Lilica (Sambado 1)Ouvindo “Sambado” do Vander Lee (coloquei a letra aí embaixo pra quem não conhece), lembro de todos os “escola de samba” que tive na vida. Aliás, penso que todo mundo de classe média para baixo já teve um carrinho assim, desses que dão mais problemas do que alegrias, que deveriam pagar IPTU ao invés do IPVA, tanto é o tempo que passam parados em oficinas. Ou, pior, largados em casa pela falta de grana para mandá-los pro conserto. Eu tive vários.
O primeiro, e do primeiro a gente nunca esquece, foi um presente divino. Estagiária, consegui juntar uns troquinhos. Não sei como conseguia economizar naquela época: hoje ganho muito mais e o que sobra é mês a beça ao final do meu salário. Mas consegui, e resolvi abrir uma poupança. Nos dois meses seguintes depositei mais uma merrequinha. Curiosa, fui conferir o saldo. Fiquei deslumbrada! Havia quase triplicado. Eram tempos negros, de inflação escorchante e, para compensar, de vantajoso rendimento, mas nunca havia imaginado que seria tanto. Não pensei duas vezes, achei a oferta no jornal, peguei mais algum emprestado dos meus pais e em dois dias era a feliz proprietária de uma Brasília amarela. Pouco depois o pessoal da CEF me procurou. A atendente que abriu minha conta esqueceu-se de girar o carimbo (alguém lembra como isso era feito naquela época?) quando preencheu o recibo de depósito do cliente seguinte e o dinheiro dele veio todinho para mim. Oba! Isto é, não gritei oba, disse apenas:
- Ah! Agora já gastei tudo... Mas, devo, não nego, pago quando puder!
Paguei a dívida em doze prestações, sem juros, o que por si só já era um presentão em tempos de inflação beirando os 30% mensais.
Penso se, assim como a dos cachorros, a idade dos carros tem relação com a idade humana. Sei lá, um ano veicular corresponderia a sete ou oito anos humanos? Pois a minha querida Lilica, que foi o nome carinhoso que dei ao carrinho, com oito anos no documento parecia ter bem uns sessenta. Vazava óleo, batia pino e fazia mais uma infinidade de ruídos entranhos, uma cantilena sem fim e, o pior de todos os defeitos que até hoje penso ter sido cuidadosamente encomendado pela minha mãe: não podia passar dos noventas quilômetros por hora que travava. Travava mesmo, igual ao Windows. A diferença é que para liberar este último, na maior parte das vezes basta sair e entrar de novo. A Lilica, não. Empacada igual a uma mula, a Brasilinha amarelinha só se dignava a existir novamente como automóvel após algumas horas de repouso, sombra e água fresca. Uma vez, com viagem marcada, saí do trabalho em cima da hora para deixá-la em casa, pegar a bagagem e uma carona de um dos irmãos até a rodoviária. No meio do caminho, a pressa aliada à minha estupidez e ao pequeno capricho de Lilica e eis-me no acostamento, coçando a cabeça e lamentando as passagens perdidas. Um rapaz, numa moto aproximou-se e ofereceu ajuda. Nem pensei. Perguntei se ele passaria pelo eixinho e, à sua confirmação, pulei na garupa da moto e pedi-lhe uma carona até a dez.
De acordo com os mecânicos, era um defeito no giclê, mal dimensionado para a passagem do combustível. Troquei o tal giclê. Nos primeiros dias até parecia que ia funcionar, mas, depois, acho que a pecinha de ferro encolhia e o defeito voltava. Troquei o giclê por um ainda maior. Não adiantou. Troquei a Lilica. Com lágrimas nos olhos, mas troquei.
"Sambado
(Vander Lee)
Meu carro é uma escola de samba
Tá todo sambado na passarela
Batendo tudo na descida
Subindo a avenida, batendo biela
Na hora de dar a partida
É preciso torcida, é aquela novela
Se não dá defeito na bomba,
É no cabo, no pino ou na pratinela
A alegoria já não anda nota dez
Sempre que passo numa poça molho os pés
A bateria anda sem forças pra levar
Mas é nas curvas que o danado
Mostra que sabe sambar
Anda esquisito no quesito evolução
Só de ano em ano é que sai do barracão
Nosso desfile pode não ser campeão
Mas quando caio no samba ele nunca
Me deixa na mão"