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Sai Dessa Vida, Meu Filho


O bip no relógio anunciou: meia-noite. É agora que eu viro abóbora, pensei, já bem cansado: estávamos tocando há horas.
Por outro lado, adoro tocar e naquela noite estava de namorada nova, Deise que foi assistir a banda pela primeira vez. Estava lá, todo pavoneado, me exibindo para ela.
O bar lotado, ninguém queria que parássemos. Já estávamos na quarta saideira. Baru subiu ao palco com seu pandeiro para uma canja.
Aos poucos, percebi uma estranha movimentação no estacionamento: dois ônibus, umas três vans e alguns carros da polícia. Achei que fosse algum assalto nas lojas próximas. Nem sabia que os vizinhos do bar haviam reclamado da música ao vivo.
Quando a polícia entrou, com um aparato digno de pegar o chefe do tráfico em favela carioca, ninguém entendeu nada. Eram vinte meganhas, armados até os dentes. O público chiou, a gente amarelou e o coitado do Baru que só tinha dado uns trinta baticuns no seu pandeiro ainda tentou argumentar que não fazia parte da banda, só tinha entrado naquela música e tal. Não adiantou. Quem tentou fazer uso do "jus esperniandis", foi igualmente enquadrado. Um fã, policial do exército, que se exaltou um pouco mais, acabou levando uns safanões.
Deise ficou atarantada. Eu olhava para ela, já imaginando que todo o meu recente esforço de conquista e sedução iria por água abaixo. Impossível imaginar que depois disso, ainda teria alguma chance...
Jogamos a chave do carro pra ela ir nos buscar na delegacia. Mamãe me ensinou a respeitar aos mais velhos e, a vida, aos mais fortes. Assim, obedientes, íamos entrando no ônibus, sem reclamar. Até que:
- Ei! Mais cuidado com isso aí! - meu irmão gritou para os homens da lei, que jogavam nossos instrumentos de qualquer jeito.
Já protegi a cabeça esperando a porrada.
- Por favor. - completou ele, recuperando o juízo.
Palavrinhas mágicas! Não apanhamos e os instrumentos foram melhor tratados a partir daí.
No xilindró, demos depoimento, preenchemos milhões de formulários: nome do pai, da mãe, tipo sangüíneo, prisões anteriores e tempo de contravenção. O advogado do bar estava lá nos defendendo, entre um bocejo e outro.

E pensar que bastava terem pedido que a gente parava de tocar.
Quando fizemos exame de corpo de delito, pensei: agora deu! Vamos ficar presos.

Não ficamos. Saímos direto pro Hotel das Nações pra tomar café. Não comíamos há mais de dez horas. A galera já estava ficando indócil!

Respondemos o processo em liberdade. Sim! Houve processo! O crime foi bárbaro. Não sei exatamente qual, mas tenho quase certeza de que foi porque o vocalista trocou a letra naquela música do Tim Maia!!
Já os instrumentos, não sei em que partes das músicas eles erraram, mas só foram liberados uma semana depois.
Condenados a pagar nossa pena em cestas básicas, eu escolhi uma creche em Planaltina. Cheguei lá, entreguei o pacote.
A freirinha, ficou toda feliz:
- Obrigada, meu filho. As crianças agradecem muito pela caridade.
Me acompanhou até a saída, mostrando as instalações do local. Pediu-me para ir visitar a instituição mais vezes. Foi quando lembrei do recibo e entreguei a ela, para assinar.
Ela olhou o timbre da Delegacia de Tráfico e Entorpecentes, que foi quem conduziu o processo já que não havia delegacia especializada para o crime de perturbação da ordem. Olhou pra mim, assinou e completou:
- Ah, meu filho! Esse negócio não dá futuro... Deus há de lhe ajudar mas, sai dessa vida, viu?
Ela pensou que eu mexia com drogas!? Não resisti:
- Obrigado, irmã. Vou tentar, mas é difícil, sabe? É vício...
Ela me olhou entristecida, enquanto eu caminhava até o carro, me segurando para não rir.

Tenho ensaio agora, apresentação da banda amanhã.
Treze anos se passaram e não deu mesmo pra largar este vício...



Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 28/04/2008
Alterado em 11/02/2010


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