Textos

Areia
Meio dia. O sol esturricava a estradinha de areia batida. Só o vento quente e furioso sacudia as folhas dos coqueiros, rente a praia. O resto, parado. Até os bichos estavam imóveis. Seu Júlio cochilava seu cansaço e calor numa rede trançada na tosca varanda que ele mesmo construíra, pouco tempo atrás. Os meninos esparramados pela casa, as barrigas inchadas do almoço e lombrigas, sem ânimo para travessuras, recostavam as cabecinhas sujas nas paredes e ficavam contando as tábuas do teto: um, dois, três, cinco, nove e dez.  Daí, começavam de novo. Não sabiam contar mais do que isso e nem queriam saber. Queriam sim, era passar logo o tempo, levando embora o torpor e a preguiça. Bebel e a mãe já tinham arrumado a cozinha, lavado toda a louça com a água salobra do poço e agora recuperavam o vestido de noiva amarelado, que há várias gerações vinha passando de mãe para filha, para irmã, para filha, para nora, para filha. Os restos da comida foram para Sapeca, uma enorme cadela mestiça, que há mais de dez anos entrara para a família, trazida filhote, por vó Isaura, quando esta ainda trabalhava de sol a sol na plantação de mandioca. Dona Luzia não queria. Olhou as patas da cadelinha assanhada de rabinho irrequieto. Sabia que ela ia crescer demais. Reclamou com seu Júlio que deu razão à mãe:
- Deixa, Luzia. A mãe tá velha, logo vai deixar a lida. Vai precisar de companhia.
Seu Júlio não sabia, mas estava sendo profético. Oito anos depois, dona Isaura teve o derrame enquanto ia para a roça, de madrugada. Foi a cadela quem deu o alarme, latindo desesperada. Os roceiros vieram ver o que acontecia, encontraram a velha caída, Sapeca a lamber-lhe o rosto. Ela ficou uns dias no hospital, depois voltou para casa, aérea, apagada. Balbuciava algumas palavras que Joãozinho traduzia. Depois de Sapeca, o menino era o mais chegado à avó. Sentava-se ao lado dela e conversava, numa língua que só os dois entendiam. Do alto de seus cinco anos, o menino dizia com autoridade, das vontades de dona Isaura. Envelheceu depressa, como todos do lugar, mas de uma maturidade interior, que transparecia apenas nos olhos, escondida pela pele bronzeada e macia de criança.
Seu Júlio levantou-se. Chamou os meninos. Tinham que voltar ao trabalho. E tinha que ser logo, porque a noite tinha pescaria e ele precisava chegar a tempo de dormir um pouco, antes de sair para o mar. Os meninos se aprumaram. Eram seis, mais a menina. Todos com nomes bíblicos, exceto Uelinton, que era o nome do médico que fez o parto difícil. Foram pegando as ferramentas, colocando os chapéus, as botinas surradas. Joãzinho chamou Sapeca. Ela levantou a cabeçorra, mas deitou-a novamente, aos pés de dona Isaura. Ele sabia que não adiantava chamá-la, mas tentava sempre. Seu Júlio despediu-se das mulheres e saiu. Os meninos atrás.
O homem ia cabisbaixo, pensando nas providências a tomar, com a chegada das dunas. Desde que se conhece por gente, já mudaram a cidade de lugar umas cinco vezes. O vento vem, cobre tudo com areia, e eles mudam de lugar. Levam a horta, as casas, a venda, a igreja. A escolinha teve que fechar. O governo cansou de construir tudo de novo. Seu Júlio estava cansado disso. Queria mudar dali, tentar outra cidade, quem sabe, mais no interior. Sem tanto vento, sem tanta areia. Mas não podia nem tocar no assunto. Ah! Isso é que não. Os filhos, a mulher e os amigos já o recebiam com sete pedras na mão. Ninguém queria sair dali. Ainda mais agora que a menina ia se casar. Enrabichou-se pelo Pedro, aquele rapazinho bexiguento, filho do seu Zé. O pai é gente de bem. Trabalhador. Forjado na roça, como ele. É com ele que seu Júlio vai pescar, toda semana, para garantir um alimento mais saudável para a família, além da mandioca, do feijão, do milho e do arroz, plantados pelo povo da cidade, homens, mulheres, crianças, jovens e velhos.  Só doença séria ou idade muita para tirar o povo da roça comunitária. De sua produção, cada um recebia o quinhão correspondente ao tempo trabalhado, contando o número de mãos. Por isso levava os meninos. A mulher e a filha ficavam em casa. Produziam farinha de mandioca e milho que trocavam na venda por pano, enlatados, leite e temperos. No fundo do quintal, umas galinhas, que quando novas rendiam ovos. Depois de velhas, viravam canja. Os franguinhos, coitados, não tinham chance de crescer muito. Os vizinhos compravam, trocando por outras coisas de que a família precisava.
Chegaram ao roçado. Viu seu Zé, acompanhado dos filhos. Viu Pedro, e não pode reprimir um sorriso. O rapazinho era mesmo muito feio. Mas era trabalhador, honesto e gostava de Bebel. E ela correspondia, o que acabava com qualquer discussão. Bebel também não era lá essas coisas. Não puxara à mãe. Herdara da avó a força, o sorriso franco e a gargalhada gostosa, além da cara de pássaro, o nariz quebrando-se num despenhadeiro, como o bico do carcará. O corpo muito magro, as pernas compridas e peludas. Como a menina alimentaria os filhos com seios tão pequenos? Se é que conseguiria tê-los: quase não tinha quadris... E que crianças feias seriam... Aliás, crianças bonitas mesmo, só aquelas  do calendário da venda. Uns meninos bonitos, gordinhos, olhos grandes e sorridentes. Tinha um negrinho, uns dentes tão brancos, um japonesinho de cabelos bem lisos e pretos. Tinha uma lourinha. Parecia um anjo. Todos tão lindos. Olhou para os seus.  E para todos os outros, que a essa altura já se espalhavam no roçado, suando esbaforidos enquanto arrancavam com as mãozinhas pequenas as raízes das mandiocas. Viu quando Moisés cortou-se, ao empunhar desajeitadamente o facão. E o viu tirar a camisa e fazer com ela um curativo improvisado, sem esboçar um único gemido. A ferida ia inflamar. O menino passaria uns dias com febre. Mas não deixaria de trabalhar. Seu Júlio sentiu uma dor tão forte que não sabia explicar onde doía. Sabia que a vida não podia ser só isso. Trabalhar de sol a sol, ás vezes, toda a noite, para ter o que comer, e ter forças de, no dia seguinte, continuar na batalha. Botar meninos no mundo. Crianças feias que se tornariam adultos feios e que trabalhariam como seus pais, tão logo fossem capazes de caminhar sozinhos. E ainda por cima esse vento quente, essa areia quente, rasgando as pernas, os braços, a pele. Uma areia poderosa, invadindo a cidade, destruindo tudo, empurrando as pessoas cada vez mais para longe. Cansaço. Muito cansaço disso tudo, dessa vida inútil.
Seu Júlio tomou uma decisão: quando as dunas alcançassem a cidade, ele não iria mais fugir. Talvez fosse esta a vontade de Deus. Acabar com esse povo feio e com suas vidas sem sentido. Precisava amadurecer a idéia na cabeça. Depois, teria que convencer a família. Quem quisesse, ficaria com ele. Quem não quisesse, poderia começar a construir a nova casa, próxima à nova sede da Igreja. Estava decidido.
Talvez para testar essa sua decisão, naquela noite o vento foi inclemente. Ao atracarem o barco na praia, os pescadores viram as dunas se moverem. E nas noites seguintes, e também durante os dias, o vento parecia ansioso em cobrir logo a cidade. Anteciparam a colheita e apressaram a construção das casas. A nova igreja já estava pronta, quando Bebel e Pedro se casaram. Não teve festa. A mudança exigia parcimônia. Os mais pessimistas previam dificuldades. Toda a cidade parecia eufórica no mutirão de construção das novas casas.
Seu Júlio parecia indiferente a tudo aquilo. Conversara com a família. Explicara que estava cansado de mudar de lugar. Tentou convencê-los de que, se conseguissem acumular alimentos para algum tempo, poderiam sobreviver na casa, até as dunas passarem. Dona Isaura o olhava firmemente. Sabia o que o filho pretendia. Dona Luzia também. Há tempos vinha percebendo que seu homem já não era mais o mesmo. Arqueava-se ao peso da idade, à mesmice dos dias quentes e abafados, de trabalhar, comer e dormir. Às vezes, vinha com umas esquisitices, de se mudarem dali, de começarem vida nova. Por um momento, pensou em reagir: Isso era loucura, suicídio, pecado. Não tinha o direito de tirar a vida dos filhos, da mulher, da mãe. Não tinha o direito de tirar a própria vida. Mas olhou as crianças, embevecidas com as idéias do pai, crédulos, ingênuos. E Júlio, tão falante! Havia tempos não ficava tão alegre! Tão deslumbrado com a credulidade dos filhos, que empolgava-se com suas mentiras. Olhou para vó Isaura. Seus olhos cruzaram-se no ar. Percebeu que, na cabeça da sogra ardia o mesmo dilema. E, sem uma palavra, elas concordaram em calar-se.
As crianças porém, passaram a viver aquela fantasia com todas as forças. Prepararam cada pormenor. Precisavam de alimentos, de espaço, de ar, de luz. Convenceram o pai a trocar a velha carroça e o barco por uma vaca. Reforçaram a estrutura da casa e cobriram também o quintal, até o poço. Fizeram uma pequena horta. Colocaram um cano saindo do telhado, como uma chaminé bem alta, apontando para o céu, onde eles pretendiam garantir o suprimento de ar. Fizeram, à volta dela, uma estrutura de madeira, para garantir reforço contra o vento. Esvaziaram a fossa e implementaram um sistema de eliminação do lixo, cavando um buraco bem fundo, num canto do quintal, para onde a terra seria devolvida um pouquinho a cada dia, para cobrir o lixo que fosse jogado. Armazenaram alimentos, óleo para a lamparina. Organizaram jogos.
Quando Bebel soube da decisão da família, desesperou-se. Pedro já construíra a casinha deles na cidade nova. Convidou a família toda para morar com eles. Era só fazer um puxadinho. A mãe levou-a a um canto e explicou-lhe tudo. Bebel olhou para o pai. Tinha vontade de matá-lo. Mas percebeu quanta dor e cansaço aquele homem forte carregava. Foi embora, com os olhos marejados.
Passados mais uns dias, a montanha de areia finalmente atingiu a casa. Primeiro o quintal, depois os quartos, a sala. Os meninos preparavam-se para lacrar a porta e as últimas janelas, quando Bebel e Pedro apareceram, afobados, carregando o colchão e o enxoval enrolado numa trouxa. A menina convencera o marido. Não poderia viver sem a família, tinha que ficar para ajudá-los. Trouxe alimentos, mais uma lamparina e umas garrafas de cachaça, presentes do casamento. Os meninos ficaram aturdidos. Como acomodariam mais um casal na casa? Seu Júlio deu a solução: teriam que buscar mais uma tábua, fariam outro quarto no quintal. Foi aquela correria. Até Dona Luzia saiu para ajudar. Ao terminarem de separar todo o material, a areia já começava a invadir a casa e eles tiveram que usar vassouras e pás para livrar-se dela. Lacraram tudo, portas e janelas e puseram-se a construir as paredes e o piso do quarto novo. Perceberam que esse tipo de coisa não é tão simples, à luz de lamparina e acabaram levando mais tempo do que o esperado. Ao terminarem, não sabiam se era dia ou noite, ou se já tinha passado mais de um dia. Mas sentiam-se cansados e dormiram. Seu Júlio sentia-se bem. Estava aliviado, a família toda reunida, trabalhando num sonho impossível, sem preocupação com o tempo, com o sol, com o dia. Lavou-se ao pé do poço e foi deitar-se renovado. Estava curioso: será que a areia, à essa altura, já cobria toda a casa? Provavelmente não. Sinceramente, não acreditava que os toscos reforços feitos pelas crianças na estrutura da casa fossem suportar o peso da areia.  Certamente, a casa não duraria muito mais tempo. Sentiu o corpo de Luzia ao seu lado. Fazia tempo que não se tocavam. O cansaço e a rotina tiravam a graça do amor.  Pelo contrário, a incerteza de que haveria um próximo dia era excitante. Lembrou-se dos primeiros anos de casamento.   Ficou ouvindo sua respiração suave, como fazia naquela época. E aquele som ritmado, o calor do corpo dela o deixaram excitado de novo. Júlio aconchegou-se à mulher, que num murmúrio adormecido tentou, de leve, afastá-lo. Esta rejeição, em outra ocasião, tê-lo-ia afastado definitivamente. Mas, naquele momento, só serviu para acender mais o seu desejo. Começou a acariciá-la, com delicadeza, até que ela estivesse completamente acordada. Luzia despertou com aquele carinho, há tempos esquecido. Surpreendeu-se com a delicadeza do marido. Aos poucos, começou a corresponder às carícias... Difícil precisar quanto tempo ficaram assim, entregues a seus corpos no escuro. Júlio deitou-se sobre ela, com um cuidado inédito, e pela primeira vez, em tantos anos, não se preocuparam com o barulho. Sabiam que todos na casa dormiam, exaustos, que nada os poderia acordar. Depois, adormeceram com gosto de despedida, certos de que não haveria outro dia...
Acordaram com os gritos das crianças. Correram para a sala, aos tropeções, tateando o escuro e viram, iluminada pela lamparina, a grande rachadura no teto, por onde a areia entrava, formando um montinho no chão. Seu Júlio estava atordoado. Imaginava que a morte seria rápida, que a areia destruiria tudo enquanto eles estivessem dormindo e ninguém sentiria nada. Mas o pavor estampado no rosto dos filhos era uma coisa que não podia suportar. Sentiu remorso, medo, vergonha e de repente, percebeu que todos aguardavam dele a solução para tamanho problema. Lembrou-se das tábuas trazidas para a construção do quarto da filha. Sobraram algumas. Começou a dar ordens. Você, pegue as tábuas, você, as ferramentas, você, varre isso para o quintal... As crianças se dispersaram, cada uma cumprindo o que lhe foi ordenado. Seu Júlio e os outros ficaram analisando a rachadura, discutindo a melhor maneira de remendá-la. Bebel apareceu na porta, com os olhos arregalados sem entender bem o que estava acontecendo. Vista assim, com a enorme camisola branca e os olhos tão abertos, parecia ainda mais uma grande ave agourenta. A mãe puxou-a para a cozinha e começaram a preparar o café, enquanto rezavam baixinho.
Depois desse susto, as situações de emergência foram esquematizadas. Dormiam quando tinham sono, comiam quando tinham fome... Não sabiam as horas, não contavam os dias... Sabiam que a casa já estava toda coberta por muita areia. As tábuas rangiam... A casa toda estalava. E, a cada barulhinho, todos corriam a buscar as ferramentas para consertar as rachaduras.
Um dia, seu Júlio estava na sala rodeado pelos filhos, contando mais uma de suas aventuras no mar... Nunca tinha tido tempo de partilhar com eles suas histórias, sua vida. Começava a gostar, cada vez mais, deste tempo livre, no escuro, com eles. Percebeu o quanto amava aquela família. Começou a pensar que, afinal, seus filhos não eram tão feios assim. Estava assim, embevecido, quando uma pequena mão tocou-lhe suavemente o braço. Virou-se para ver o que era e percebeu, iluminado pela luz difusa da lamparina, o rosto sombrio de Joãozinho. Não precisou perguntar nada. O menino olhava para ele e para a avó, alternadamente. Foi até ela, e confirmou o que já tinha entendido. Ninguém chorou. Enterraram-na no fundo do quintal. O menino enfeitou-lhe a última morada com conchinhas, formando uma cruz e o nome dela. Quando terminou, Sapeca arrastou-se lentamente até lá e enrodilhou-se no chão como sempre fizera ao lado da dona.
Os dias seguintes foram tristes e calados. Um abafamento, toda aquela escuridão... A sombra da cadeira vazia dançava ao sabor do lampião, lembrando sempre a ausência daquela que fora, durante tantos anos, a alma daquela casa. De repente, uma gargalhada cristalina. Era a gargalhada de vó Isaura, rasgando o silêncio e a melancolia. Bebel ria, no quarto com a mãe que, também sorrindo, tentava fazê-la calar-se. Vieram todos ver o que havia. As duas sentadas na cama, a filha com as mãos na cintura olhou para o pai e brincou: “... quem diria, hein?”. Dona Luzia sorria encabulada e, pela oitava vez em sua vida, dava aquela notícia ao marido: “Vamos ter um filho...” Mas, dessa vez, tinha mais: “...e um neto.”  Seu Júlio parecia atordoado como sempre ficara. Depois, alegrou-se, como das outras vezes, e sentou-se entre elas envolvendo-as com seus longos braços. E estava tão feliz, que queria viver para sempre ali, ao lado de sua família. Amava seus filhos, amava sua mulher, amava seu neto. Amava até o genro feio e bexiguento que continuava ali, aparvalhado, em pé, na porta. E decidiu que, mais do que nunca, ia lutar para fazer com que a casa resistisse à passagem da duna. Queria voltar logo à horta, à pescaria. Queria ir à igreja, agradecer a Deus por ter-lhe mostrado o caminho. Os meninos gritavam, abraçados ao cunhado, às mulheres, ao pai. Ninguém percebeu quando, por ironia, o teto partiu-se estrondosamente ao meio, toda a estrutura da casa cedeu e a sala, os quartos, a cozinha e o quintal foram, finalmente, invadidos pela areia.
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 13/03/2008
Alterado em 15/02/2010


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