Textos


O Show (causo)

Ela acordou ao som da própria voz, cantando, a plenos pulmões e com toda a alma:

Só pra deitar e rolar com você
com você com você com você ê ê ê

Ainda ofegante pelo susto, sentia as palavras do trecho final de "Mania de Você" ecoando em sua mente. Brincava no silêncio do quarto àquela hora da madrugada, o pequeno e vibrante duelo entre voz e violão:

Nada melhor - din din din din
Nada melhor ô – din din din din tein
Do que não fazer nada – din din din din din din din
Nada – tein tein

Ela começou a recompor os fatos do dia, da última semana.
Os ensaios, as músicas ouvidas à exaustão, cada trecho e mudança melódica anotados, para não haver erro no dia do show. As amizades que foram surgindo, o enorme respeito pelos profissionais que participavam dessa sua nova aventura.
As imagens iam se construíndo na cabeça, ainda entorpecida pelo sono bruscamente interrompido, até chegar ao momento do show. Que dia lindo! Aquele céu azul, sem uma nuvem sequer, prenunciava o sucesso retumbante, as palmas e ovações. As mulheres do grupo estavam maravilhosas, bem vestidas, maquiadas. Os rapazes belos e confiantes. Enfim, tudo estava perfeito. O show começou, as músicas iam sendo uma a uma lindamente interpretadas, até que, após o último refrão da tão esperada Rita Lee os instrumentos cortaram as vozes e encerraram a música. E ela, que estava cantando com toda a energia acumulada para aquele momento tão ensaiado, estancou a voz para não soar sozinha no silêncio.
Neste momento, o título da peça de Guarnieri começou a rebombar em sua cabeça: “Um Grito Parado no Ar”, “Um Grito Parado no Ar”, “Um Grito Parado no Ar”, substituindo aos poucos a melodia abortada na garganta e tudo foi ficando mais claro.
Tentou dizê-lo em voz alta, não muito forte para não despertar o marido e percebeu, decepcionada, que ainda estava afônica. A mesma afonia que a havia impedido de participar do show. De fato, o que a havia arrancado agora dos braços de Morfeu não foi sua voz cantando, mas um vigoroso ataque de tosse, provocado pelo frio das roupas úmidas de suor da febre que agora já lhe acometia.
E, como num delírio febril, se viu, vestida com o lindo vestidinho preto que pretendia usar na apresentação, maquiada e penteada como as outras, cantando sob as luzes dos holofotes, afinadinho, num ritmo perfeito:

Nada melhor do que não fazer nada,
Só pra deitar e ... com você
Ãhã Ahãhã
Rolar, rolar, rolar, rolar com você
Rolar, rolar, rolar, rolar com você
Rolar, rolar, rolar, rolar com você

Sob o aplauso do público e os sorrisos de cumplicidade no palco, ela finalmente, adormeceu...
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 10/03/2008
Alterado em 17/12/2009


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