- Tá mais magra, dona Zuleica?
- Ai, Helena! É muito sofrimento...
- Sofrimento? Que sofrimento?!
- Dieta e ginástica.
- Dona Zuleica, dona Zuleica! Deus castiga!
- Já castigou: me deu tendência a engordar!
- Óóóóó!
- Tá, Helena, vou parar de blasfemar. E obrigada por ter notado o resultado do meu sofrim... Do meu esforço.
- De nada.
- Ôxi, Helena! Tava brincando.
- Eu sei... Desculpa. É que... Tá tudo tão ruim, tanto sofrimento de verdade pra todo lado...
- Você tem razão. Vivemos tempos difíceis.
- Tu não faz ideia. Tenho vizinho que perdeu emprego... Se não fosse os irmãos da igreja... Tudo lascado igual, mas vai um ajudando o outro, dividindo o pouco que tem...
- É, Helena! O Brasil voltou ao mapa da fome, 60 milhões de brasileiros sofrem de insegurança alimentar.
- Eu já passei fome, sabe? Mamãe esperava papai chegar com alguma coisa pra gente comer. Às vezes, ele trazia umas cabeça de peixe. Mamãe fazia um caldo, misturava farinha de puba e era esse pirão que enchia o bucho da gente. Às vezes só tinha a farinha e ela fazia um mingau ralo. Às vezes, não tinha nem a farinha.
- E como estão seus pais, agora?
- Ah! Eles aposentaram. A vila lá, já tem uns 10 anos, encheu de turista... Vem gente das outra cidade trabalhar. Mas, o Alfredo...
- Seu irmão?
- Isso.
- O que se formou pelo Prouni?
- Ele. Tava trabalhando, ganhando bem. A empresa quebrou ano passado, demitiu todo mundo.
- Foi a política do fica em casa?
- Não, que eles nem ficaram. É alimento.
- Ah!
- Pois é. O mano voltou pra vila, com a mulher e os meninos. Papai tá ajudando, até ele arrumar alguma coisa, mas ele tá mal. Depressão. Tem dia que nem sai da cama.
- Essa doença está virando uma epidemia, depois de tantas mortes, de medo e isolamento social, volta da inflação, do desemprego, piora na qualidade de vida, caos institucional, destruição do país, do meio ambiente, ameaça de golpe. Até guerra, teve!
- É pra ficar doido, mesmo.
- Vou te contar uma coisa. Quando começaram a falar que essa guerra podia acabar com tudo, eu cheguei a desejar isso? Parece que tudo está sempre piorando.
- Credo, dona Zuleica! Tá com depressão também?
- Não, Helena! Só cansada, desencantada. Ao mesmo tempo que vejo a possibilidade de tirarmos esses cancervadores do poder...
- Cancervadores?
- Se dizem conservadores, mas agem mesmo como um câncer, destruindo o organismo que os alimenta.
- Gostei. Continua.
- Então? Quando nos livrarmos dessa gente horrorosa, o país estará tão arrasado, que arrisca o próximo presidente não conseguir fazer nada e eles ainda voltarem, igual nos states.
- Aff! Vira essa boca pra lá.
- Virei. Eita! O que é aquilo?
- Seu Elísio me pediu para fazer bolo de café.
- Daquele, que parece um brownie!?? Que fica maravilhoso com sorvete?
- Isso.
- Ah, não, Helena! Não posso nem chegar perto. Só de olhar já engordei uns três quilos.
- Ô, sofrimento!
Texto publicado na minha coluna semanal do jornal Alô Brasília: