Textos


 
Brava Gente


Viajando de caminhonete pelo nordeste há alguns anos, aderimos ao “ponto do dedão”, comum em vilarejos onde, na falta de transporte público, a população pede carona. Numa dessas cidadezinhas, subiu em nossa carroceria um sujeito mirrado e encolhido, os braços apertados contra o peito. Mais adiante, outras pessoas esperavam transporte. Nosso destino não interessou a nenhum deles, mas um senhor do grupo, reconhecendo nosso passageiro, perguntou-lhe para onde ia. Ouvimos a resposta em tom de voz miúdo:
– Vou pra Odália. De lá, pro posto de saúde. Cortei o dedo na moenda. – e mostrou a mão enrolada num pano todo ensanguentado.
Ao ver aquilo, me apavorei. Saí do carro, fiz o sujeito descer e sentar-se na cabine conosco. Dei uma bronca:
– Tá doido!? O senhor sacolejando ali em cima, esvaindo-se em sangue, num sol desses… Imagina se o senhor desmaia e cai!
Ele deu de ombros, quase envergonhado.
– Podemos levá-lo ao hospital direto. De lá, o senhor liga para Odália.
– Ela tem telefone, não.
– Ela tem carro?
– “Qualo” quê! – quase um sorriso – “Pegamo” outra condução. É perto.
– Mas, o senhor está sangrando muito!
– Carece, não. Tô bem.
Desistimos. O raciocínio era muito simples pro nosso entendimento. Paramos em frente à casa indicada onde uma apreensiva Odália já o aguardava.
Oferecemos carona até o tal posto. Recusaram: precisavam esperar uma vizinha com quem deixar as crianças.
Eles se despediram de nós, agradecidos. Seguimos pela estrada rezando que fossem logo em busca do socorro e pensando na robustez desse povo sofrido, na simplicidade de suas almas sem ambição, na dignidade com que aceitam seus destinos, recebendo como bênçãos divinas as gentilezas e obséquios alheios.
Comparo com a canalha que se aboletou no poder, que se enraizou como erva daninha, controlando Câmara, PGR, exército e atacando, com fúria, tudo o que não conseguiu dominar: STF, TSE, imprensa, CPI… E lembro da gente enraivecida que os apoia, inclusive nas polícias.
Inevitável perguntar:
Somos mesmo, todos, brasileiros?


Texto publicado na minha coluna semanal do jornal Alô Brasília.
Veja no jornal acessando:
http://alo.com.br/impresso/qui-26-08-2021/
Estou na página 7, Vida & Lazer
Também pode ser lido na minha coluna online
https://alo.com.br/brava-gente/
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 26/08/2021


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