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Bola, Bolinha, Bolota

 
Bolinha morava nas ruas. Ninguém sabia quem ela era ou se ela tinha um nome antes. Ela apenas apareceu por lá, a barriguinha já bem redonda de tantos filhotinhos. Era mesmo uma bolota, não podia ter outro nome.
Quando já estava perto de ganhar seus bebês, alguns moleques das redondezas, desses que desconhecem o valor da vida, acharam de fazê-la mesmo de bola e começaram a chutá-la em direção ao gol. Aninha chegava da escola e, horrorizada com a macabra brincadeira, correu para chamar dona Efigênia. A velha senhora cuidava de Bolinha desde que ela apareceu por lá, dando alimento, água e abrigo num canto do beco entre duas casas.
Quando soube o que estavam fazendo com sua protegida, ela virou bicho. Saiu de casa armada com uma vassoura e enxotou a garotada, indo em socorro da pobre cadelinha, que jazia, desacordada. Mesmo sem condições, dona Efigênia levou Bolinha a um veterinário seu amigo. Bolinha resistiu às agressões, mas seus bebezinhos não tiveram a mesma sorte. Estavam todos mortos. O veterinário sugeriu aproveitar para castrar a cadelinha, na cirurgia de retirada dos filhotinhos, mas dona Efigênia teve pena:
- Pobrezinha! Ela perdeu os seus bebês, vamos deixá-la engravidar de novo.
O médico, pacientemente, explicou à dona Efigênia as vantagens da castração para os animais. Além de evitar os bebezinhos indesejados, o que é muito bom, já que não há lares para todos, também evita doenças, gravidez psicológica e o próprio cio que para algumas cadelinhas, principalmente as que vivem nas ruas, é um inferno, já que são perseguidas incessantemente por machos de todos os tamanhos, inclusive alguns muito maiores do que elas e que podem machucá-las seriamente na cruza ou matá-las no parto.
- Mas, assim, ela nunca vai realizar seu desejo de ser mãe! – ainda ponderou a boa senhora.
Ele esclareceu que, para os animais, a maternidade é apenas uma imposição hormonal, não tendo este mesmo peso que tem para as mulheres. Aliás, ele insistiu, a cadela castrada nunca mais terá qualquer lembrança de seus instintos sexuais e se tornará mais livre, pois deixa de carregar consigo a responsabilidade pela preservação da espécie. E deu alguns exemplos de cadelinhas do bairro que eram castradas e muito felizes.
Dona Efigênia, apaixonada por animais como era, conhecia todas as que ele citou e reconheceu que mesmo a mais idosa e até uma outra que usava cadeirinha de rodas eram muito alegrinhas e satisfeitas.
- E não vai engordar?
- Engorda de qualquer jeito, se tiver tendência, se comer muito ou não tiver atividade.
Ela ainda pensou um pouco... Tinha mesmo muita pena de roubar a maternidade da sua protegidinha, mas entendia que o médico tinha razão.
- Mas eu não tenho condições de pagar, doutor.
- Nós temos projeto de castração aqui. Sai bem mais barato e eu conheço alguns grupos de proteção que fazem apadrinhamento. Posso ver se algum tem verba no momento para lhe ajudar.
E, dizendo isso, já pegou logo o telefone e falou com alguns amigos que concordaram em pagar, não apenas a castração, mas também os demais cuidados necessários à cadelinha: vacina, vermífugo, exames completos e a medicação para o pós-operatório.
Quando Bolinha deixou a clínica, já não era mais uma bolota. Agora, era possível ver o quanto ela estava magrinha e sofrida pelos maus tratos, o pelo falhado, as costelinhas salientes.
Dona Efigênia não resistiu mais. Levou-a para dentro de casa e passou a cuidar dela com carinho de mãe.
Quanto aos meninos que a maltrataram, dona Efigênia e Aninha conversaram com eles e ensinaram a todos a amar e a cuidar dos bichos.
Bolinha deixou de ser uma bolota e tornou-se uma elegante negrinha, do pelo lustroso e muito amor para dar. Ah! E o que ela mais gosta nessa vida, é brincar de bola!
 
Este texto faz parte do Exercício Criativo - Uma bola não é uma bola
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Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 25/08/2014


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