Textos




Borboletas na Vidraça
 
A arte existe, porque a vida não basta!
(Ferreira Gullar)


Na terceira vez que um convidado à minha casa se esborrachou contra a vidraça da varanda, decidi tomar providências. Colei no vidro umas borboletas de tecido, coloridas e bem realistas. Ficou bonitinho, até bucólico contra o verde de minha paisagem ao fundo.
Agora, a visão da janela me remete a García Márques e a cena das borboletas amarelas em Macondo. Deu vontade de reler Cem Anos de Solidão... Deu mesmo foi vontade de respirar cultura, como eu fazia quando cursava a faculdade Dulcina e estudava canto e violão, época em que vivia pelos teatros, prestigiando colegas e professores.
Pegava a agenda cultural do jornal de sexta-feira e ia riscando ali as peças, shows e filmes a que assistia durante a semana. Às vezes, não sobrava um!
Hoje, às voltas com trabalho, tênis, proteção animal e literatura, quase não visito plateias. Palcos, às vezes, em saraus, palestras, debates, entrevistas sobre literatura. Mas é só!
O culpado disso tudo é o tempo. Vinte e quatro horas por dia é muito pouco para tudo o que quero fazer. Publiquei petição online e até angariei umas assinaturas, mas Deus foi veemente:
- Dia de 36 horas? Não mesmo! - disse Ele. - Isso é antinatural!
Ora bolas! Antinatural é me encher de paixões e não me dar tempo para vivê-las! Ele nem me deixou prosseguir com as blasfêmias:
- Olha lá! Ao invés de dias mais longos, posso lhe dar uma vida mais curta. Que tal?
Já me sugeriram repriorizar. Como, se tudo é prioritário?! Dormir, nem tanto, mas o corpo exige! Já tentei roubar umas horinhas de sono pelo bem das artes... Só o que consegui foi avariar de vez a memória, coitadinha, já tão caquerada. E assim, se vai quase um quarto dos meus dias com essa coisa inútil de sonhar!
Opa! Sonhar não é inútil. O mundo é feito de sonhos realizados. Mas, bem que a gente podia sonhar acordado, né!?
Já sei... Esquece! Seria antinatural.
Quer saber? Vou me rebelar. Quero cultura, já! Abro um jornal e descubro que, hoje, cultura é Anitta, Tons de Cinza, Justin Bieber, vampiros adolescentes e...
Credo! Melhor dormir! Quem sabe, não me aparecem em sonhos as borboletas de Macondo?

 
Texto publicado na edição de 10/01/2014 do Jornal Alô Brasília, reeditado do texto homônimo publicado neste Recanto das Letras em 05/01/2009.
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 10/01/2014
Alterado em 10/01/2014


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