Com a Bunda de Fora
"As pessoas reclamam que o álcool causa muitas mortes,
mas não param para pensar em
quantas pessoas nascem por causa dele"
Charllie Harpper
A madrugada luminosa e fria veio encontrá-lo vestido com a camisola do hospital, o bumbum aparecendo pela abertura traseira, descalço, agarrado a um orelhão, chorando.
Horas antes, bebia na casa de amigos e, ao sair, ninguém estava sóbrio o bastante para convencê-lo a ir de táxi. Não deu outra. Destruiu o carro num poste e só acordou bem depois, numa enfermaria do Hospital de Base, já medicado e vestindo a tal camisola. Para seu horror, o homem na maca ao lado estava morrendo e, apesar de haver uma cortina entre eles, podia ouvir os sons dos diálogos aflitos de médicos e enfermeiros em volta do moribundo, numa operação desesperada de ressuscitação.
Assustado e ainda entorpecido pelo álcool e pela medicação, nosso herói decide fugir. Levanta-se, livra-se do soro e sai de fininho, esgueirando-se pelos corredores da Emergência, até chegar à portaria, onde um segurança o vê e tenta impedi-lo de sair. Difícil acreditar que um bêbado franzino tivesse condições de escapar do brutamontes que o tentava segurar, mas ele conseguiu, lépido como uma jovem lebre, escapulir por entre os carros do estacionamento. Correu esbaforido pelas ruas até encontrar um orelhão, de onde ligou a cobrar para que o pai viesse buscá-lo. Abraçava o aparelho para não cair e chorava, de gratidão por estar vivo, de medo ou pura depressão alcoólica.
Da camisola aberta nas costas, era possível ver-lhe a bunda.
E foi assim que a madrugada o encontrou, ao chegar, luminosa e fria.
Este causo é verídico e está publicado no meu livro Contos Crônicos 2. Achei que ilustrava bem o assunto, já que o tema do ENEM neste ano foi a lei Chê-ca (endureceu, pero sin perder la ternura jamás). Ficou ainda menos eficaz ao incentivar o exagero, quando nivela no crime o moço do conto e dona Elô, com sua tacinha de vinho diária. Melhor seria manterem a lei anterior, eliminando as brechas que permitem a impunidade e aumentando a fiscalização e o policiamento. Melhor ainda se, ao invés do bafômetro, usássemos os testes de aptidão americanos que avaliam o equilíbrio e reflexo do motorista.
Já pensou? Tiraríamos das ruas os bebuns e os barbeiros!
Este texto foi publicado no jornal Alô Brasília, na edição de
01/11/2013, reeditado do texto homônimo, publicado neste Recanto das Letras em
04/04/2008.