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Possuída



 
- Transtorno bipolar!? Era o que me faltava! Eu sou uma madre superiora de uma grande ordem católica, vê lá se tenho uma doença assim, tão mundana!? Está mais do que óbvio que o meu problema é espiritual.

- Espiritual, madre?

- Sim! Então você não vê, doutor!? Eu estou possuída!

- Ora, madre... A senhora veja... Eu sou um homem da ciência. Nâo posso crer...

- E é por isso que eu não queria vir. Eu sabia que a sua falta de fé não lhe permitiria entender.

E, dizendo isso, a freirinha rechonchuda levantou-se com dificuldade e caminhou até a porta.

- De qualquer modo, muito obrigada, doutor Plátenes. Sei que o senhor é um homem ocupado e foi mesmo uma grande gentileza ter-me recebido.

Embora polida, ela saiu do consultório irritada. Não como a “outra”, mas bastante irritada. Sentia-se impotente, sem saber o que fazer.

Lembrou-se de quando começaram as tais possesões. Estava no refeitório após as orações matinais, quando apagou. Ou, achava que tinha desmaiado. Ao retornar, todas as freiras a olhavam como se estivessem diante de um fantasma ou do próprio demônio.

Disseram-lhe que ela havia se transformado numa outra pessoa, totalmente diversa de seu temperamento usual. E pior, fora particularmente cruel com a doce irmã Conceição, embora tivesse sido grosseira com todas à sua volta. Quebrara algumas louças e uma cadeira e cuspira na direção de uma noviça que escapou ligeira por uma das grandes portas laterais.

Depois desse, outros episódios se seguiram, cada vez com maior intensidade. Ela não acreditava nos relatos até que uma das irmãs conseguiu filmar a outra.

Desde então, a madre estava convencida de que era vítima de possessão e procurou, dentro da própria igreja, o caminho para submeter-se a um exorcismo.

Procurando o bispo, ele exigira que ela primeiro procurasse um psiquiatra, antes de cogitar qualquer outra questão. Agora, com este diagnóstico, que, provavelmente ele já conhecia, certamente seria obrigada a submeter-se a um tratamento primeiro, antes que lhe dessem ouvidos. E, neste ínterim, seja lá o que a estivesse dominando, teria o tempo necessário para derrotar de vez seu espírito.

Sentou-se na praça, mesmo sabendo que não era prudente permanecer na rua por muito tempo. Poderia ter uma nova crise e acabar ferindo alguém. Porém, sentia-se tão frustrada que não sentia ânimo de voltar ao convento. Não sabia o que dizer às freiras, tão esperançosas de que ela voltasse ao normal...

- Irmã... - uma voz masculina disse, ao seu lado.

Ela levantou os olhos e deparou-se com um padre idoso que lhe apontava, sorrindo, o espaço livre, no banco, ao seu lado.

Ela puxou o hábito contra o corpo, para liberar-lhe o assento. Ele se sentou, agradecido. Tirou um livro do bolso e começou a ler, enquanto fazia anotações.

Inadvertidamente, ela leu o título, na página aberta: “A importância da água benta no ritual de exorcismo”.

Não se conteve:

- Estudando exorcismo, padre?

- Ah, não! Estava apenas revisando, para a terceira edição. Eu sou o autor.

E mostrou-lhe a capa, onde se lia “O Ritual do Exorcismo em Tempos de Internet”, Padre Fábio Rossi.

- Oh, padre! Que feliz coincidência!

E, sem rodeios, ela lhe contou os fatos dos últimos dias.

- Mas, se o médico diagnosticou bipolaridade, madre...

- Ora! O que sabe a ciência das coisas de Deus? Ou do “outro”?

- Bom... Isto é verdade.

- Então!?

- Podemos fazer um teste...

- Teste?

- Sim, madre! No seu caso, para que não reste a dúvida, podemos realizar um exorcismo de provocação.

- Que consiste em...

- Provocar o demônio.

- Santo Deus! - disse ela, fazendo o sinal da cruz.

- Mas não é a senhora mesma que quer um exorcismo? Se seu problema for mesmo apenas psiquiátrico, não acontecerá nada.

- E se eu tiver razão?

- Aí, teremos como convencer a cúria para autorizar o exorcismo.

- Mas e a... “coisa”!? Não será perigoso provocá-la?

- Bom... Pela sua descrição das manifestações dela, dormindo ela não está.

E assim, foi feito. Pelo caráter extra-oficial do procedimento, o padre preferiu usar o apartamento de um amigo. Fez a madre deitar-se no meio da cama, amarrou suas mãos e começou a ler algumas orações em latim para expulsar o demônio de seu corpo.

Apesar de ansiosa e temerosa, ela estava completamente passiva. Fosse mesmo uma possessão, não se rendia a tais convites.

O padre pegou então um vidro de água benta e aspergiu o líquido sobre ela.

Nada. Nenhuma reação. Isso durou ainda algum tempo. Enfim, ela convenceu-se:

- É padre... Acho que meu mal é mesmo o tal do transtorno bipolar.

- Também estou achando, madre. - disse ele, desamarrando-a da cama.

Ela se levantou e partiu, agradecida e um pouco envergonhada de ter insistido naquilo. O “exorcista”, então, despiu o hábito, esvaziou a garrafinha na pia e embalou tudo junto com o livro, para devolução à diocese. Ligou ao amigo, dono do apartamento, para dar a notícia:
- Tudo certo, doutor Plátenes. Ela deve voltar a procurá-lo em breve. Fico só imaginando o que aconteceria se algum dia eu usasse água benta de verdade...

 


Este texto faz parte do Exercício Criativo - O Exorcismo na Madre
Saiba mais, conheça os outros textos:
http://encantodasletras.50webs.oexorcismodamadre.htm


Imagem daqui.
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 30/04/2013


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