O Nazista
Desde que se mudara para aquela casa, Mauro ainda não conseguira dormir. Conservara sua velha cama de sempre, o mesmo colchão, os mesmos lençóis, cobertas e travesseiros, mas não encontrava posição em que se sentisse relaxado para que o corpo se entregasse ao sono.
Os amigos, tentando ajudá-lo, já haviam cogitado a possibilidade de ser alguma característica do quarto. Talvez fosse algum ruído, a temperatura, a umidade, ácaros, fungos, mosquitos... Ele meneava, desanimado, a sonolenta cabeça. A casa era nova, confortável, numa área arejada e arborizada de um bairro nobre. Todas as velhas casas da região foram derrubadas e novas residências modernas e luxuosas, erigidas em seu lugar. De qualquer modo, o problema não era o quarto. Tentara acomodar-se em outros cômodos e nada.
Se o problema não era da casa, também não era psicológico. Não tinha nenhuma preocupação, nenhuma dívida, muitos amigos e uma família amorosa e divertida, que se reunia aos finais de semana para almoços sempre muito animados. Seus relacionamentos eram todos bem resolvidos, com mulheres igualmente independentes, nenhuma paixão ou cobrança. E, o que era mais impressionante: nenhuma delas teve dificuldades de dormir quando passou a noite por lá.
Mauro procurou um médico que, após uma série de exames, lhe garantiu não haver nenhum problema de saúde que justificasse a insônia e lhe receitou um calmante.
Naquela noite, tomou o medicamento e, enquanto o sono não vinha, sentou-se na cama com o computador sobre o colo, zapeando desinteressadamente pela Internet, até que um clique equivocado levou-o ao editor de textos.
A página abriu-se em branco à sua frente, o cursor piscava, convidativo. Sem pensar muito, começou a escrever sobre a angústia de não conseguir dormir bem há mais de um mês, o quanto isso o estava abalando, prejudicando seu trabalho... Aos poucos, aquilo que era apenas um desabafo começou a delinear-se como um texto em terceira pessoa, narrando a história de um oficial nazista igualmente insone. Intrigado com este inesperado viés em seu despretensioso passatempo, ele resolveu dar corda à inspiração e seguiu escrevendo até de manhã.
Já no trabalho, o calmante finalmente fez efeito e o sono veio forte, obrigando-o a esconder-se num depósito, onde dormiu no chão duro por algumas horas. Levantou-se dolorido e revigorado, mas, quando retornou à sua mesa, foi chamado à sala do chefe que o repreendeu por sua queda no desempenho. Ao saber de sua situação, em respeito e consideração pelo bom empregado, o chefe decidiu antecipar-lhe duas semanas de férias, dispensando-o imediatamente.
Mauro voltou para casa e retomou o texto da véspera. Não precisou reler o escrito para continuá-lo. Tinha vívidas na memória todas as passagens da vida daquele homem, cujos crimes e atrocidades, ele jamais pensou ser capaz de imaginar e, muito menos, descrever com tal riqueza de detalhes. Mais do que isto: o mapa psicológico da personagem mostrava um ser doentio, incapaz de qualquer empatia por suas vítimas, nenhuma culpa. Ao contrário, não era apenas um oficial no cumprimento frio do que entendia ser o seu dever, mas sentia verdadeiro prazer em exercitar sua crueldade.
Quando jovem, aprendera um pouco de português com uma criada de sua família e, ao final da guerra, refugiou-se no Brasil, sob o disfarce de um tranquilo professor de alemão. Sua vida na SS foi completamente apagada de seus documentos, mas nunca poderia ser apagada de sua memória. Dia após dia, desejava sentir de novo o cheiro de sangue, ouvir os gritos de dor, desespero e ódio impotente dos oprimidos. E, assim, como um viciado, começou a ansiar por reviver aqueles momentos. Mas, como? Qualquer ato impensado seu resultaria em sua descoberta e, consequentemente, sua extradição, julgamento e morte.
Ao desejo incontrolável de voltar a matar, veio juntar-se o calor sufocante do verão carioca, roubando-lhe o sono noite após noite. O cansaço potencializou os desvarios daquela mente perturbada que se perdia nas imagens dos mais perversos assassinatos. Da janela do sobrado, via as pessoas passando nas ruas e imaginava-se as atacando, com a fúria de um animal selvagem e faminto, rasgando-lhes as carnes com lâminas afiadas. O sono vinha já quando ia alta a madrugada e lhe trazia sonhos ainda mais sanguinários.
O mesmo começou a acontecer com Mauro. Enquanto o sono não vinha, esmerava-se na descrição dos crimes cometidos por sua personagem e quando, vencido pelo cansaço, cochilava alguns instantes, sonhava com cenas grotescas de pessoas torturadas e mortas das maneiras mais cruéis. Ao despertar, corria ao computador para descrever tais imagens.
De repente, o livro deixou de ser a história do oficial nazista para tornar-se um corolário sobre as muitas maneiras de se matar alguém de forma cruel e dolorosa.
Nas madrugadas insones, Mauro postava-se à janela, observando os transeuntes, imaginando-se ao seu encalço, como uma fera voraz. Daquela morena altiva arrancaria a pele inteira, os olhos, os bicos dos seios pontudos. Só então, a mataria. Do senhor bonachão e seu neto, certamente começaria pela criança... Dor. Queria causar muita dor e sofrimento antes de lhes dar o descanso do sono final.
Sabia o quanto tinha a perder se ousasse realizar qualquer uma dessas atrocidades, mas já não podia mais controlar seu desejo.
- E este maldito calor! – murmurou sufocado, com um estranho sotaque alemão.
Este texto faz parte do Exercício Criativo - Enquanto o Sono Não Vem
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