Grande figura, o Cristiano. Ainda criança, apaixonou-se pela arte, quando, a caminho da igreja com os pais, passou perto de um grupo de pintores que expunha suas obras em barracas, na rua. Atrasaram-se para o sermão do padre Olério, pois foi quase impossível arrancar o garoto dali. E, desde este dia, o garoto sempre aparecia com uma novidade.
Quis ser pintor, escultor, violonista, violinista, pianista, cantor, escritor, ator...
Os pais, com boas condições financeiras, apoiaram cada fantasia do menino, pagaram cursos, compraram material e incentivavam-no em tudo o que ele sonhava. O sucesso veio cedo. Aclamado pelo público, aos vinte anos, ele já possuía fãs e discípulos.
Ele, porém, jamais se sentira plenamente satisfeito com seus dotes. Dividido entre tantas paixões e dono de uma autocrítica severa - às vezes, cruel -, por mais altos que fossem, seus vôos nunca atingiam o céu como ele esperava. Se isso o torturava, por outro lado, ao contrário do que acontece com a maioria das pessoas, a cada fracasso, mais crescia sua paixão.
Uma tarde, enquanto andava pelas ruas, viu uma menina tocando bandolim. À sua frente, um chapéu com algumas moedinhas, jogadas pelas pessoas que passavam por ali, mais por apiedarem-se da criança do que por sincera admiração. Indiferente a tudo, ela tocava. Cristiano aproximou-se. Ela mantinha os olhos fechados, enquanto interpretava um chorinho famoso com tanta emoção que quase não se percebia a falta dos demais instrumentos usuais àquele gênero.
O rapaz não conseguia mover-se dali. Estava completamente embevecido com a pequena bandolinista. Quantos anos teria? Queria conversar com ela, mas não ousava interrompê-la em seu transe musical.
Quando, finalmente, ela parou de tocar e começou a preparar-se para deixar o local, ele acercou-se dela.
- Olá! - ele disse, sorrindo.
- Oi! - ela respondeu, sem chegar a fitá-lo, mais ocupada em contar o dinheiro.
Com uma pequena careta de decepção, guardou as moedas num saquinho que guardou na caixa do bandolim, pendurou-a no ombro e encaminhou-se para a esquina.
- Espera! - ele pediu. - Qual é o seu nome?
- Deyse. - ela resmungou entre dentes. Havia sido orientada a não dar conversa a estranhos.
Caminhava decidida e ele a seguia de perto. Estendeu-lhe a mão, que ela não apertou.
- Eu sou Cristiano. - recolheu o braço, envergonhado. - Você toca muito bem! Gosta de Altamiro Carrilho, não?
Ela reduziu o passo.
- Sim! Conhece?
- Já toquei na flauta.
- Você toca flauta? - interessou-se ela, finalmente dirigindo-lhe um olhar avaliador.
- Toco. Mas queria falar de você. Onde aprendeu a tocar?
- Minha mãe tocava. Ela morreu.
- Sinto muito. Quantos anos tem?
- Quatorze.
- Puxa! Parece menos.
Ela não gostou. Tornou a apressar o passo.
- Desculpe-me! Não quis ofendê-la.
- Não ofendeu. - ela mentiu. - Apenas tenho pressa.
- Para quê!?
- Quero chegar na estação do metrô para aproveitar a hora do movimento.
- Mas logo vai escurecer. Não é perigoso você ficar na rua até tarde?
- Mais perigoso voltar para casa sem grana.
- O problema é este? Quanto precisa?
- Pelo menos 30.
- Tome! - disse ele, tirando uma nota de 50 da carteira.
Ela pegou a nota. Em seguida, tentou devolver.
- Não preciso tanto. Já tenho 12.
- Fique com os 50.
Ela permanecia com a nota na mão, desconfiada.
- Fique. É um adiantamento. Venha trabalhar pra mim.- Trabalhar com o quê? - ainda na defensiva.
Ele pegou um cartão e deu a ela.
- Procure-me amanhã, neste local. Agora vá para casa.
Na manhã seguinte, a menina apareceu cedo. Vestia-se melhor que na véspera, embora ainda humildemente.
Ele fez as contas. Tocando nas ruas, ela tirava uma média de 900 reais por mês.
- Você vai receber 1200 trabalhando aqui. Mais benefícios.
- E o que é que eu vou fazer?
- Estudar. Música ou o que quiser.
Ao mesmo tempo em que estava fascinada com essa perspectiva, a menina não conseguia relaxar. Algo não batia naquela história. Nada em sua vida fora fácil e, desde a morte da mãe, que tocava em bares para sustentar o marido e a filha, tudo estava ainda pior. Sozinha com o padrasto vagabundo e beberrão, a menina se viu obrigada a seguir os passos da mãe e tocar nas ruas. Abandonara a escola e apanhava sempre que não conseguia levar dinheiro suficiente para custear-lhe a bebida. Porém, aquele rapaz jovem e até bonito, agora lhe oferecia a chance que sempre quisera. Questionou um pouco mais, até se convencer de que ele não lhe faria mal e nem estava zombando dela.
- Você pode me pagar um pouquinho desse dinheiro todo dia? Para meu pai não saber.
Cristiano concordou, mas ficou intrigado com aquilo e resolveu investigar. Ao saber da situação da garota, procurou seu padrasto e “a comprou” dele. Não foi caro. O homem assinou todos os papéis passando-lhe a guarda de Deyse, que finalmente respirou aliviada.
Com o apoio de Cristiano, a menina estudou música e tornou-se uma celebridade no país. Ele, por sua vez, descobriu enfim qual era o seu maior talento: descobrir e apoiar artistas.
Com isso, além de Deyse, ele levou ao estrelato vários meninos e meninas talentosos, e, com eles, finalmente alcançou o céu.
Se, com este texto, você ainda não descobriu o meu amigo secreto, posso dizer que foi o mesmo do ano passado. Como, naquela ocasião, já a presenteei com uma história sobre cãezinhos (uma de suas paixões), neste resolvi fazer referência a outra de suas grandes paixõe: a arte. Ela que já foi secretária de cultura (não sei se o nome do cargo é mesmo este) em Lavras, onde reside e a quem, por sua incansável atuação em prol da música eu sempre chamei de mecenas..
Merô! É sempre uma alegria lhe homenagear.
Feliz Natal, Ano Novo e tudo de bom!!
Ah! Apesar de não ter falado de cachorros, achei uma imagem da menininha com um...
:)
Este texto faz parte do Exercício Criativo - Amigo Oculto 2012
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