Odeio Rodeio
Era uma vez, uma linda princesa. Ofélia era seu nome, mas ela não era uma princesa comum. Para começar, porque, seu pai, não era um rei de verdade. Vaqueiro criado na roça e no trabalho duro de conduzir o gado pelo sertão, ele havia se tornado o grande rei dos rodeios, Jamil Tornado. E esta era a segunda razão porque ela não poderia ser considerada uma princesa comum. Ela odiava o reino de seu pai. Não suportava ver os bichos sendo maltratados daquele jeito.
Para ela, era inacreditável que alguém achasse um ato de coragem, quando um homenzarrão como um daqueles cowboys torcia o pescoço de um bebê de vaca. Insuportável ver os recursos que usavam para causar dor aos animais, para que parecessem bravos e ameaçadores. Por várias vezes, tentou convencer o pai a parar com aquilo, comparando o espetáculo na arena ao que se apresentava no Coliseu, onde os cristãos eram entregues aos leões para júbilo de um povo manipulado pelo imperador. Como nada disso fizesse efeito e, não suportando aquele espetáculo deprimente da barbárie humana, Ofélia fugiu. Não podia aceitar que seu pai fizesse parte daquilo e, certamente, não era aquilo que pretendia herdar.
Seu pai, desesperado, procurou-a por toda parte, sem sucesso. Às vésperas do carnaval, ele suspeitou que ela estaria no Rio de Janeiro, já que a menina sempre gostara muito da festa e amava a Portela. Jamil, então, lançou um desafio: àquele que a trouxesse de volta, ele concederia sua mão.
Apesar de Ofélia ser mesmo muito linda e considerável a fortuna de seu pai, poucos resolveram procurá-la. Entre outras razões, porque sabiam que ela acabaria fugindo de novo. Ela jamais aceitaria casar-se com alguém só porque seu pai queria assim.
Foi quando entrou na sala da grande fazenda do rei Jamil um sujeito meio estranho, todo vestido de preto, um cabelo multicolorido, em laranja, rosa, verde, azul e amarelo, meio espetado, meio lambido e muito, muito comprido:
– Rock Prince? – Jamil estranhou a presença do rapaz.
– Vou procurar sua filha. – disse, resoluto, o filho roqueiro do rei da música sertaneja, Vidal Valdir.
Jamil achava o rapaz um ingrato por não seguir o estilo do pai, mas, àquela altura, ele era a sua única esperança de encontrar a menina.
Rock chegou ao Rio em pleno sábado de carnaval. Se não suportava o estilo de música do pai, aquele baticum era igualmente desagradável. Sentia falta de um solo de guitarra ali no meio daquela bagunça, uma bateria mais elaborada...
Porém, procurou não pensar mais nisto. Era um príncipe à procura de sua princesa, a garota mais linda que ele já vira.
Para começar sua busca, nada melhor que a concentração da Portela no sambódromo. Ele acreditava que ela sairia na ala das baianas, portanto, era só procurá-la. O tema do samba enredo da escola naquele ano era a Amazônia e, ao verem-no passando, com aquela cabeleira colorida, os responsáveis pela alegoria o arrastaram para a ala que homenageava a fauna:
– Tá perdido, dona Arara? Volta pra formação!
– “Peraí”! Eu não sou arara! – ele tentou sair..
– Não!? Então, o que está fazendo aqui? – um segurança grandalhão perguntou.
Rock, vendo que estava encrencado, na mesma hora se corrigiu:
– Sou um faisão dourado! Não está vendo o topete!?
– Ah! Então, coloque logo suas asas e o bico. – resmungou o brutamontes, sem saber que, na Amazônia, não existem faisões dourados.
Era a deixa que ele precisava. Bateu na testa:
– Putz! Esqueci no carro!! – e, sem dar chance de reação, escafedeu-se dali.
O segurança não gostou nadinha da brincadeira e saiu ao seu encalço.
Rock infiltrou-se na ala das lendas amazônicas e ficou por ali fingindo-se de curupira, até que viu o carro alegórico recoberto de palha. Discretamente, enrolou-se em algumas delas, bem a tempo de despistar o segurança que quase o vira ali. Assim que o homem virou as costas, Rock saiu da formação, correndo à procura da ala das baianas.
Foi parado no bloco seguinte, em homenagem à flora amazônica. Quando viram aproximar-se aquele sujeito colorido da cabeça aos pés, os foliões logo cantaram:
– Apareceu a orquídea imperial, olê, olê, olá!
– Não era a margarida? – Rock perguntou.
– No caso, é orquídea mesmo. Entra logo na marcação. – respondeu o líder da ala, que não estava para brincadeiras.
Lá estava Rock Prince, novamente preso, sem chance de procurar sua princesa. Ele nem acreditou quando viu que a ala das baianas estava logo ali, pertinho dele. Nem disfarçou. Correu até lá, só para ser, finalmente, barrado pelo segurança.
– Te peguei, seu penetra! – gritou o marmanjo, segurando Rock pelo braço.
– Ah! Por favor, moço! Eu só quero ir ver as baianas.
– Vê lá das arquibancadas! – o outro respondeu.
– Uma delas é o amor da minha vida! – ele falou.
Ao ouvir isso, o segurança se emocionou:
– Sério? – perguntou, com a voz embargada.
– Sim! Por favor! Você nunca amou na vida?
O segurança engoliu em seco, o olhar distante, como se trouxesse à lembrança uma grande paixão do passado.
Rock aproveitou:
– Eu preciso encontrar essa mulher!
O segurança olhou para ele com ternura e, em seguida, com um empurrão, o expulsou dali:
– Quando acabar o desfile, você vem procurar.
Rock Prince se viu fora do Sambódromo, certo de que precisava voltar a entrar, mas nas arquibancadas não conseguiria, pois, mesmo que tivesse o dinheiro dos ingressos, nem os cambistas teriam mais algum para vender.
Saiu dali meio desanimado, sem ver perspectiva de retornar. Foi quando ele viu, num campo de futebol de várzea, um “jogo das virgens”, onde todos os jogadores estavam travestidos de mulher, com salto alto e tudo. Um deles, lutava contra as muitas saias de uma fantasia de baiana, sem sucesso.
Ele chamou o sujeito de lado e ofereceu:
– Vamos trocar de fantasia? A minha é muito mais leve, essas palhas podem ser presas ao corpo...
O sujeito nem pestanejou, topou na hora. Só ficou um pouco decepcionado ao saber que o topete não fazia parte da fantasia, mas, enfim, pelo menos poderia jogar alguma coisa.
Rock vestiu a fantasia bem suja de terra, escondeu a cabeleira num turbante de renda branca enfeitado de pedrarias e voltou ao sambódromo, onde encaminhou-se ligeiro ao encontro da ala das baianas e da sua amada, Ofélia.
Foi parado pelo segurança novamente, mas, desta vez, para ajudá-lo a chegar logo ao seu destino:
– Vamos, moça, vamos! Você está atrasada! – dizia ele, fazendo Rock apressar o passo.
– Moça, não!
O segurança reduziu o passo, desconfiado.
– Senhora! – emendou Rock, vendo que já ia se meter em confusão de novo.
Ufa! Foi por pouco. Os dois retomaram a marcha apressada rumo a ala das baianas lá ficou o príncipe roqueiro.
Rock deu uma passada de olhos entre as outras baianas à sua volta e logo encontrou a sua amada. Ela também o reconheceu e, sabendo da promessa de seu pai, de dar a sua mão em casamento para quem conseguisse levá-la de volta, fugiu.
E foi aquela correria: a princesa vestida de baiana tentou se esconder na ala dos indígenas, mas como esconder uma mulher toda vestida de branco no meio de várias outras quase nuas? Logo Rock a alcançava. Eram dois bolos de noiva desviando das peladonas, num atrapalhado jogo de pebolim.
E quando os dois se enfiaram no meio da bateria é que a coisa fugiu do controle, foi bumbo, cuíca, pandeiro e tamborim sendo jogados longe no susto que a passagem daqueles dois provocou nos tocadores.
E antes que eles acabassem de vez com a organização, foram os dois parados pelo segurança grandão que os levou para um salinha onde funcionava um camarim.
Trancou os dois ali dentro. Mais tarde, resolveria o que fazer com eles. Agora tinha que ajudar a recolocar ordem na casa, isto é, na escola.
Depois de alguns instantes em silêncio, Rock finalmente perguntou:
– Por que você fugiu?
– Porque meu pai é um monstro capaz de causar mal aos outros só por dinheiro e diversão.
– Seu pai!? Seu pai é um doce de pessoa, incapaz de fazer mal a uma mosca.
– Desde que a mosca não seja um boi, uma vaca ou um bezerrinho...
– Ah! Os rodeios. Não fica assim, os bichos já estão acostumados.
– Isso não existe. Ninguém se acostuma a ser maltratado. Se eles tivessem escolha jamais participariam disso.
– Mas o que é tão ruim nos rodeios?
– Além do público berrando em seus ouvidos, além de serem laçados em plena correria, dos brutamontes torcendo o pescoço dos bezerrinhos e da tortura para eles sentirem dor e parecerem mais bravos?
Rock lembrou-se que era costume amarrar e até dar choques nos testículos dos touros. Por empatia, levou a mão ao meio das pernas.
– E agora? – perguntou a ela.
– Agora, quando o segurança vier nos soltar, eu volto para o meu carnaval, você volta para o seu patrãozinho e diz que não me encontrou.
– Ele não é meu patrão.
– Você está trabalhando para ele. Ele é seu patrão.
– Na verdade, estou trabalhando por você.
– Por mim!?
Foi a deixa que ele precisava para confessar-lhe todo o seu amor que vinha dos vários encontros que tiveram, quando ainda acompanhavam seus pais, nas arenas onde os dois reis se apresentavam. Ela ficou encantada. Afinal, também já havia reparado nele.
– Nunca gostei desse seu cabelo.– ela disse.
– E eu detesto carnaval. Mas vim para o maior deles atrás de você.
Antes do beijo que selaria aquele amor, o segurança retornou, botando os dois pra fora dali.
Eles caminharam de mãos dadas pela praia, duas baianas apaixonadas, sendo que uma delas usava a cabeleira de uma ave rara.
Conversaram muito e decidiram retornar aos seus respectivos reinos e, juntos, agirem para acabar com os rodeios.
Seria uma guerra longa, que eles abraçariam, cada um com aquilo que gostava de fazer. Ele, com o rock, ela com o samba. Ele com sua cabeleira multicor, ela com o carnaval. E, os dois, com muito amor.
Texto escrito para o Desafio Literário da Câmara dos Deputados
Contos de Fadas da Dinamarca - Etapa 3 - Opção 1
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 17/10/2012
Alterado em 17/10/2012