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A Bruxa que Queria ser Fada


Mavilda era a bruxa mais poderosa da Dinamarca. Sua mãe vinha da mais tradicional e sangrenta linhagem de magos do país e seu pai era descendente direto de um grande druída, profundo conhecedor da magia dos elementos e das ervas, exilado da Gália por sua índole perversa.
Com tal legado, Mavilda não era só poderosa. Era também muito cruel.
Perto de completar seu terceiro século de vida, ela mantinha-se jovem e bela, à custa de sacrifício humano, realizado sempre na segunda lua cheia após o seu aniversário, num ritual macabro em que ela se banhava no sangue de suas vítimas: lindas donzelas, oferecidas pelo Rei. Em troca, a bruxa não destruiria as plantações e cidades, como já fizera algumas vezes, com os insolentes que se recusaram a pagar-lhe o pesado fardo.
Por essas e outras, Mavilda era muito odiada. Por mais que sua beleza fosse exuberante, que sua riqueza fosse insuperável, não havia um único homem que dela se aproximasse, sem a intenção de destruí-la. Mesmo entre outros bruxos, ela sentia-se ameaçada, cercada pela inveja e maldições.
Seu único amigo e confidente era um velho iguana, quase tão velho quanto ela, chamado Mefisto. Só ele suportava seu mau gênio e arrogância, mas também já andava impaciente e irritadiço.
Entediada e solitária, Mavilda decidiu sair pelo país, disfarçada, em busca de alguma aventura. Pra não ser reconhecida, ela tomou uma poção que a fez parecer mais idosa e, vestindo trajes muito simples, deixou seu sombrio castelo, em peregrinação. Ninguém que a conheceu duvidou que ela fosse mesmo uma humilde camponesa, chamada Sofia, pobre viúva, desterrada pela ambiciosa família de seu esposo, que nem o esperou esfriar na cova para usurpar-lhe a herança.
Em uma das aldeias por onde passou, ela conheceu Adamastor, jovem, belo, forte e um grande líder, respeitado pelos aldeões por sua sabedoria, justiça e bondade. Ao saber que havia uma mulher viajando sozinha por aquela região, tão fria e perigosa, foi logo ter com ela para oferecer-lhe ajuda ou, ao menos, garantir sua segurança enquanto estivesse pelas cercanias.
Quando os dois se encontraram, Mavilda sentiu seu coração batendo forte no peito. Ficou surpresa ao perceber que ainda possuía um, tão desacostumada estava de senti-lo bater. Não que ele não batesse antes, mas é que séculos de maldades o haviam endurecido de tal forma que ele movia-se num ritmo monótono, ausente de emoções: nem sustos, nem alegrias.
A feiticeira estava apaixonada, mas logo entendeu que não era correspondida. Em parte, por sua aparência envelhecida, mas, principalmente, porque seu amado era casado com uma linda artesã, a quem era totalmente devotado.
Quanto à esposa inconveniente, seria fácil eliminá-la. A morte, aparentemente natural, se daria em poucos dias, provocada por eficiente veneno e Mavilda sabia exatamente que raízes e folhas misturar para obtê-lo. Com o manto da invisibilidade, não teria dificuldades para derramar algumas gotas na bebida dela. Depois, bastaria retomar sua forma original, para seduzir Adamastor com sua estonteante beleza.
Porém, uma sombra pairava ainda sobre a feiticeira. Naquela noite, ela jogou todo o conteúdo de um pequeno frasco verde, sobre uma velha vassoura, que começou a flutuar. Mavilda montou sobre ela e saiu voando de volta ao seu castelo.
Lá, a esperava um sonolento Mefisto.
– Já de volta? – ele perguntou, irônico. – Encontrou o que procurava?
– Sim! Mais até! Mas, agora, preciso da sua opinião.
O iguana percebeu a ansiedade dela. Estranho, vê-la assim, aflita. E, ainda mais estranho, observá-la contando as aventuras dos últimos dias. Em especial, o novo brilho no olhar, quando ela falou de Adamastor. Mefisto logo entendeu o seu dilema: o rapaz jamais poderia amar Mavilda. Todas as aldeias do país já haviam pago, ao menos uma vez, o tributo ao rei na forma de uma jovem donzela para o sacrifício à feiticeira. A aldeia de Adamastor não estaria isenta desta paga; certamente, ele não a perdoaria por isso.
– Ora! Não o deixe saber! Case-se com ele e viva uma vidinha humana feliz. – disse ele.
– Eu preciso apresentar-me a ele em minha aparência verdadeira. E se ele me reconhecer?
– Minta. Diga-lhe que só se parece com a grande e malvada bruxa!
– Bom seria se fosse assim, tão simples! O que direi ao meu marido quando tiver que ausentar-me por três noites seguidas para realizar o ritual de renovação?
– Não o faça!
– Mefisto! Esqueceu-se de quantos anos temos? Se eu não repetir o ritual já na próxima lua cheia, nós dois viramos pó!
– Por mim... Penso que já vivi o bastante.
– Eu não! Ainda mais agora.
– Quem diria!? Mavilda ama! – ele desdenhou.
A bruxa, que estava mesmo apaixonada, mas não suportava desrespeito, ameaçou:
– Eu lhe transformo num sapo, Mefisto! Ou num rato!
– Que diferença faz, mulher? – o iguana estava mesmo cansado daquela vida – Pode me transformar no que quiser.
– É isso! – ela gritou, enquanto corria para buscar um grande livro poeirento, acomodado no alto de uma estante.
O iguana fingiu desinteresse, mas, desta vez, havia ficado curioso.
Ela colocou o livro sobre a mesa e começou a procurar:
– Transformação... transformação... – murmurava ela, passando as páginas rapidamente – Aqui!
Mefisto subiu pela parede até ficar sobre a mesa, xeretando. Mavilda o empurrou, irritada.
– Sai daqui, iguana idiota! Você não sabe ler!
Era verdade. Ele podia falar, mas era analfabeto. Humilhado, ele pulou da mesa e voltou para a sua pedra.
– E então? – perguntou, desdenhoso. – O que vai transformar?
– Eu!
– Você!? Como assim?
– É certo que ele não aceitará uma bruxa, mas todos gostam de fadas.
– Fadas... Fadas!? Você espera se transformar numa fada?
– Isso! Elas são lindas, amadas, bondosas e, o que é melhor, imortais.
– Você também é imortal.
– Não! Eu só não envelheço. Mas, a que preço? Todo ano, uma vida é ceifada para que a minha se perpetue.
– E desde quando você se importa com essas vidas?
Mavilda rodopiou pelo quarto:
– Desde que eu descobri o amor!
– Mavilda, Mavilda! Nos conhecemos há quase três séculos. Espera mesmo que eu acredite nisso?
– Oh! Está bem, senhor desmancha prazeres! Sei que preciso me esforçar mais para convencê-las.
– Convencer quem?
Mas ela já estava concentrada na leitura do livro, não respondeu.
– Nunca imaginei que você quisesse ser fada.
– Sempre sonhei com isso.
– Por que não fez logo esse feitiço, ao invés de matar donzelas?
– Porque é muito mais divertido...
– Você é um monstro!
– … mas, principalmente, porque não existe um feitiço para isso.
– Não? Eu pensei que você tinha achado um aí, no seu livro.
– Este não é um livro de feitiços, seu bisbilhoteiro! É um livro de leis.
– Ah!
– Fadas podem transformar mulheres normais em outras fadas, desde que atendam algumas condições.
– Quais?
Mavilda leu em voz alta. Todas dificílimas, todas exigiam bondade, caráter, sensibilidade... Nenhuma delas, possível para alguém como Mavilda.
– Eu posso fingir. – ela contemporizou.
– Para enganar as fadas tanto assim? Só com bruxaria!
– Mefisto! Você é um gênio! – e o pegou pelas patas, girando com ele pelo quarto. O iguana velho não gostou nada daquilo, deu-lhe um arranhão e escapou, indo refugiar-se debaixo da cama.
– Lagartixa miserável! Consegue estragar a alegria de qualquer um! – disse ela, massageando o pulso machucado. – Ah! Fique aí com o seu mau humor que eu tenho mais o que fazer.
E voltou à estante, de onde tirou um outro livro grande e grosso, colocando-o sobre o primeiro, na mesa. Folheou, afoita, as páginas, até encontrar o que procurava.
Ela soltou um pozinho sobre a lenha da lareira, que, imediatamente, começou a queimar. Em seguida, colocou sobre as chamas um caldeirão, derramou nele algumas colheres de saliva de ornitorrinco e foi juntando os ingredientes da receita: penas de gralha, antenas de barata, dente de morcego, pelo de hiena, peçonha de taturana, veneno de cobra verde, suor de macaco, espinho de ouriço...
– Ih! Estou sem unhas de iguana...
Mefisto afundou-se mais debaixo da cama.
– Nem vem!
– Vou sim, meu amigo!
E abriu um tubo de onde saiu uma fumacinha, que ela soprou sobre a cama. O móvel foi se abaixando, abaixando, até quase tocar o chão. Para não ser esmagado, Mefisto pulou dali. Encontrou Mavilda já preparada para pegá-lo, com uma grande tesoura na mão.
– Não! Não! Elas não voltam a crescer! – implorou ele.
A bruxa nem se importou. Cortou logo três, para deixar uma de reserva. Ele foi chorar as mágoas debaixo do sofá, enquanto ela voltou ao caldeirão.
O cheiro se espalhou por todo o ambiente e Mavilda foi se modificando, sua beleza recuperada, mas muito mais leve e doce, a voz suave, toda uma delicadeza que a feiticeira jamais teve.
Com esta aparência e uma boa história, Mavilda submeteu-se ao conselho das fadas. Não foi fácil e foram necessários alguns dias, para convencê-las de que ela havia mudado, que já não era mais aquela pessoa má e egoísta, que seria capaz de ser uma boa fada para todo o sempre.
Numa cerimônia simples e rápida, ela foi transformada na fada Benícia.
- Mas preciso mesmo mudar de nome? Já estou tão acostumada...
- Sim! - insistiram as fadas. - Tudo em você tem que indicar sua bondade.
À noitinha, a fada Benícia retornou a aldeia, ao encontro de seu amado, Adamastor, muito abalado pelo misterioso falecimento de sua amada esposa.
A nova fada apareceu discretamente, ao lado dele e, com muita doçura, esforçava-se para consolá-lo.
Vulnerável, ele se deixou ficar, sem se dar conta de que aquela mulher estranha, embora muito linda, não deveria estar ali, em seus aposentos.
Ao contrário, foi se deixando envolver pelo carinho dela e as lágrimas que antes lhe corriam pela barba mal feita, já começavam a secar.
Ela, então, aproveitando-se dessa aparente submissão dele, roubou-lhe um beijo.
Foi o que bastava para que ele despertasse de seu transe, levantando-se de um salto e perguntando:
– Quem é você?
Ela disse a ele que era uma fada, e que andara de aldeia em aldeia à procura de almas fortes, generosas e gentis como a dele, para formar um exército. Porém, ao vê-lo tão sofrido, não resistiu e quis ajudá-lo.
– Um exército!? Para quê?
– Há uma guerra a caminho, precisamos estar prevenidos. – ela respondeu, sem pensar. Não havia planejado esta conversa muito bem.
– Guerra? Contra quem?
– Contra os bruxos.
Como ele não pareceu muito convencido, ela acrescentou:
– E os dragões.
Na mesma hora, Adamastor mostrou-se furioso:
– Malditas fadas! – vociferou. – Como me arrependo de ter ajudado uma de vocês. Ela achou que eu ia adorar ser um humano durante o dia, e me lançou este encantamento idiota como prêmio! Só para que eu sofresse agora a dor desta viuvez! E, se isso não bastasse, querem combater dragões! Era só o que me faltava!
Como a noite viesse caindo, ele começou a crescer, foi crescendo, crescendo, e se transformou num monstruoso lagarto vermelho, que, num gesto muito rápido, lançou um enorme jato de fogo sobre Benícia, transformando-a em cinzas.
Mefisto, que a tudo assistia pela bola de cristal abriu um largo sorriso e murmurou, vingado:
– Quem diria? As fadas não são imortais, afinal.
Depois, deu de ombros:
– Ou, então, Mavilda só pensou ter enganado as fadas.
O iguana viveu tranquilo seus últimos dias, até a lua cheia seguinte, quando, sem o ritual de renovação, acabou se convertendo num descansado e alegre montinho de pó.
Adamastor só parou de odiar as fadas, quando uma delas desfez o feitiço e lhe permitiu ser um dragão de dia e de noite. Ela também desmentiu a história de que as fadas haviam declarado guerra aos dragões, o que selou de vez a paz entre eles.
Ele jamais se casou novamente e seguiu liderando os aldeões, que ficaram muito felizes em conhecer sua verdadeira face, já que, além de justo e bom, ele ainda era muito mais forte. Muitos anos depois, foi conduzido ao trono da Dinamarca, onde nunca mais permitiu que bruxas malvadas ditassem as leis do país.
Mas isso, já é outra história.



Texto escrito para o Desafio Literário da Câmara dos Deputados
Contos de Fadas da Dinamarca - Etapa 1 - Opção 5

Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 19/09/2012


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