Textos



A Vingança das Sereias


A pele queimada de sal e sol dava-lhe uma aparência cansada, agravada pelo sorriso raro e penoso. Difícil precisar sua idade, qualquer palpite entre 30 e 60 seria igualmente válido. A voz mansa, meio rouca, era quase um sussurro. Falava baixo, como se temesse ser ouvido por um caçador à espreita, embora alguns acreditassem que ele agia assim para não espantar a própria caça.
De qualquer modo, caça ou caçador, era um homem fascinante. Passara grande parte de sua vida no mar, onde vivera as mais incríveis aventuras e, vez em quando, reunia os aldeões para contar a eles suas histórias
no pequeno bar do vilarejo. Não o fazia com prazer. Ao contrário, costumava fazê-lo somente após muita insistência dos presentes, que se amontoavam à sua volta para não perderem nenhum dos detalhes relatados. E só quando todos silenciavam, ele começava, quase como quem partilha um segredo:
- Foi assim que aconteceu...
Nem sempre foi assim. No início, ele chegava taciturno, cumprimentava a todos com um aceno de cabeça, pedia meia garrafa de pinga e um copo e ia sentar-se em uma mesa ao canto. Lá ficava, ensimesmado, só voltando a se levantar após o último gole. Deixava a paga pelo consumo e saia. Embora todos ali no vilarejo se conhecessem, o pescador vivia isolado, pescava para o próprio sustento, bem como era apenas de subsistência a pequena horta no fundo do quintal. Não se lhe conhecia esposa ou filhos e, mesmo sua origem era um mistério. Ele simplesmente aparecera ali. Adonara-se do pedaço de terra em que vivia e lá erguera, sozinho, a sua tapera...
Sua vida eremita atraia todo o tipo de lucubração e, sempre que ele entrava no bar, tornava-se o alvo das conversas vãs. Ignorava educadamente os que tentavam uma aproximação.
Em dia de jogo os homens desinteressavam-se dele, os olhos grudados na velha televisão em que um pedaço de Bombril fazia - mal - as vezes de antena. Do mesmo modo, quando havia eventos mais frescos, uma moça fugida, tempestades recentes, naufrágios ou jangadas vazias devolvidas à areia, permitiam-lhe restar sossegado em seu canto, alheio a toda a agitação. Uma noite, porém, uma palavra conseguiu retirá-lo de seu transe melancólico e fazê-lo juntar-se aos outros para ouvir o ocorrido: sereias. Dezenas delas, contava o marinheiro. O barco fora cercado e todos os marujos quedaram enfeitiçados com a cantoria. Alguns chegaram a saltar na água. Os outros foram salvos pela chegada de uma enorme baleia que assustou as mulheres-peixe, fazendo-as desaparecer nas águas turvas da baía. Ao ouvir aquilo, o ermitão sussurrou:
- Elas me acharam...
Alguns ali jamais haviam escutado sua voz e o olharam surpreso.
- As sereias? - alguém perguntou.
Confirmou sorumbático, antes de voltar ao seu canto.
Esta pequena intromissão foi o fim de sua paz. Foi logo cercado pelos demais pescadores e marinheiros. Depois de muito insistirem, ele finalmente empurrou o copo para o lado e começou, com voz pausada e suave:
- Foi assim que aconteceu... Há alguns anos, encontrei uma delas. Ela cantou, cantou, gemeu, chorou mas eu não a ouvia.
- Não? Mas, como?
- Era minha primeira viagem como um homem casado. A única voz que me enfeitiçava era a de minha Maria.
- Que sorte a sua!
- Sorte? Aquilo foi a minha desgraça!!
- Por quê?
- Uma sereia morre se um homem ouve seu canto e não se queda enfeitiçado.
- Ela morreu?
Sim. Ela havia morrido, ele confirmou, quase num lamento. E continuou:
- As sereias vivem em bandos... Logo, os seus vieram à procura de vingança.
- Sua esposa!! - adivinhou um dos presentes.
Uma lágrima correu no rosto do homem. Alguém ainda perguntou se agora elas estariam ali à procura dele, porém, ele não respondeu mais nada. Levantou-se e saiu, deixando ainda uns bons goles de sua pinga sobre a mesa.
Por alguns dias, ele não apareceu. Porém, uma noite, talvez atraído pelo vício da cachaça, lá estava ele, sentado em sua mesa no canto.
Foi logo cercado pelos aldeões, ávidos por notícias. Ele não estava muito disposto a conversar, mas, como os outros insistissem muito, começou outra história:
- Foi assim que aconteceu...
Esta não falava de sereias, mas de piratas.
- Piratas? Neste século? - perguntaram.
Ele ignorou a interrupção e contou a história de piratas que atacavam outras embarcações, pilhando tudo o que pudessem encontrar, inclusive o pescado do dia.
- Mas o meu barco eles não roubaram! - acrescentou ele, sem vaidade, como quem fala do tempo.
E contou as muitas peripécias que fez para escapar a um ataque deles.
Apesar de seu tom quase monocórdio, a riqueza de suas histórias ia encantando a todos na cidade e logo até as mulheres e crianças vinham ao bar para ouvi-las.
O homem tornou-se a novela do local e só perdia interesse em dia de jogo ou quando havia eventos mais frescos... Nessas noites, ele parecia sinceramente agradecido em poder aproveitar da paz e do sabor de sua pinga. Estranhamente, essas noites tornavam-se cada vez mais frequentes, pois um fenômeno vinha intrigando os aldeões: o sumiço de moças.
Sendo um vilarejo pequeno e atrasado, era natural que os jovens da cidade desejassem novos destinos e, no caso das meninas, muitas acabavam mesmo fugindo, pois seus pais raramente concordavam que saíssem de casa senão pelas mãos de um marido, sob as bênçãos de Deus, nosso Senhor.
Porém, as ocorrências aumentaram de uma a duas por ano, para o dobro disso por mês!! E mais: não apenas as jovens solteiras, mas também algumas casadas simplesmente esvaeciam.
Quando restavam na cidade apenas mulheres idosas, o contador de histórias desapareceu também, do mesmo modo como havia aparecido.
Logo pensaram que ele finalmente teria sido encontrado pelas vingativas sereias e lamentavam sua sorte, até que um outro marinheiro, de passagem por ali, contou ter se deparado com um grupo delas a algumas milhas da costa:
- Para nossa sorte - disse ele - elas nos ignoraram, mais interessadas estavam em partilhar o banquete oferecido por um navio maior, atacado horas antes. Um espetáculo terrível! As feras devorando pedaços humanos, pernas, braços, enquanto o homem observava...
- Homem!?
- Sim! Um homem e, sabe de uma coisa? Fez lembrar muito aquele contador de histórias que havia por aqui. Onde anda ele?
Depois do primeiro choque, contaram ao marinheiro tudo o que acontecera.
O homem então se admirou:
- Mas, vocês não sabem? Quando um homem mata uma sereia torna-se escravo do bando, obrigado a recrutar mulheres até encontrar uma para o lugar daquela que matou.
- Recrutar?? Como?
- Ele seduz as mulheres e leva pra rainha ver. Sua missão só termina quando ele encontra uma mulher à altura da sereia que matou.
- E as outras?
- A rainha devora. Provavelmente a tal Maria foi a primeira de suas vítimas.
Enquanto os aldeões se desesperavam ante o terrível destino de suas mulheres, num outro vilarejo não muito longe dali, um homem estranho e calado, de idade imprecisa e gosto pelo álcool levantava uma pequena tapera.




 
*****

Este texto faz parte do Exercício Criativo - ... Foi Assim que Aconteceu
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Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 30/09/2011
Alterado em 02/10/2011


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