Mafalda, o Final
Mafalda procura o doutor Rubião na cadeia, para desabafar todo o seu rancor contra o médico e acaba tendo a língua decepada por ele, num arremedo de beijo.
Depressiva, recolhida à sua casa, sem poder se comunicar ou usar o telefone, fica limitada aos seus pensamentos. Sofria por não poder falar, mas o que mais lhe doía era o desamor de Rubião que, por um momento, a enganara. Ela chegou a acreditar em tudo o que ele disse antes do beijo, e aqueles foram os momentos mais felizes da sua vida. Apesar da crueldade que ele lhe fez, Mafalda não conseguia esquecer aquele beijo.
Tinha que vê-lo novamente. Olhar nos seus olhos e, já que não podia dizer nada, tentaria adivinhar o que realmente ia na alma daquele homem. Ela queria crer que a dentada fora um impulso de vingança, mas que no fundo ele a amava, sim. Afinal, o amor dela por ele era tão forte e já durava há tanto tempo, que ele certamente teria sido tocado por essa paixão em algum momento, e também alimentava por ela o mesmo sentimento.
Arrumou-se toda, perfumou-se, e foi de novo ao presídio, visitar o médico, objeto da sua obsessão. O Diretor relutou em deixá-la entrar. Afinal, acabou cedendo, espantado com a deferência que ela parecia nutrir pelo prisioneiro que lhe havia feito tanto mal. Entrou carregando caneta e o bloquinho onde escrevia aquilo que queria dizer e deu de cara com um Rubião avelhentado e magro. O nariz parecia haver crescido, e a verruga, ameaçadora, ainda mais se salientava. Aqueles meses de cadeia tinham-no maltratado um bocado!
Mafalda, porém, viu um quadro encantador: o homem dos seus sonhos, ali, tão perto. Rubião olhava para ela, com uma expressão incrédula, as sobrancelhas hirsutas arqueando-se interrogativas.
- O que é que você quer, agora? - disparou ele, com a voz ainda mais cavernosa do que já era.
Mafalda desatou a escrever no seu bloquinho, a mão trêmula: “Vim te ver. Precisava tirar uma dúvida: você me ama?” e destacou a folhinha, que estendeu para ele.
Rubião leu aquilo, e começou a rir, riu tanto que ficou tomado por um acesso de tosse. Os seus pulmões não andavam muito bem, com a umidade da cela e o bolor das paredes. Quando se acalmou, conseguiu responder:
- Amar você? De onde você tirou isso? Está doida? Eu nunca achei a menor graça em você. Você é feia, magra, e muito, muito chata, com essa mania que tinha, de falar sem parar o tempo todo. Ninguém te aguentava. E eu te odiava, te odeio!
Mafalda sentiu fugir-lhe o chão. Encostou-se à mesa no centro da sala para não cair. Empolgado com esta reação dela, ele prosseguiu:
- Mesmo que você fosse a última mulher sobre a terra, eu não te queria. O que está pensando? Eu não atendia o telefone, quando via que era você. Eu mandava a enfermeira dizer que não estava na clínica, quando você me procurava lá. Eu fugia de você, entendeu bem?
Ela esboçou um grunhido de dor, um lamento que lhe vinha da alma. Perdera os seus melhores anos dedicada àquela paixão e, agora, via finalmente, com clareza, a inutilidade de tudo isso.
- … e agora estou aqui, por sua causa, sua abelhuda. Quem mandou ficar me seguindo? O que é que você tinha com a minha vida?
Mafalda apertava a caneta de aço na mão. Com asco, ele arrematou:
- Antes tivesse te matado, quando você estava na minha clínica...
Foi o que faltava. Num repente, ela atirou-se em cima dele que, fraco e surpreendido, caiu ao chão. Ela cravou-lhe a caneta no peito uma, duas, três, muitas vezes, sentindo rasgar-se a carne e, a cada estocada jorrava o sangue, abundante, enquanto a vida se esvaía dos olhos dele, fitos nos dela. E, nesse momento, viu no olhar de Rubião, um sentimento que ela acreditou ser de amor, o amor que ele negara tão cruelmente, mas que, agora, na hora da morte, transparecia por fim, pleno de gozo. Mas o gozo era o dela que gemia de prazer enquanto se lambuzava com o sangue de Rubião, quente e vermelho, da cor da paixão. Deitada em cima dele, sentindo-lhe os estertores da morte, abraçou-o com força e atingiu o clímax, pela primeira vez na vida. Agora, era uma mulher completa. Ofegante, deixou-se tombar languidamente ao lado dele.
Após alguns minutos de êxtase, ela despertou de seu transe homicida. Sentia o cheiro da morte, seu gosto nos lábios, os cabelos endurecidos dos coágulos que neles se fixaram. Enojada, soltou-se de Rubião, as mãos doloridas da pressão exercida sobre a caneta. Horrorizada, viu o que havia feito. O médico estava irreconhecível, com sangue e cortes por todo o peito, pescoço e rosto.
Levantou-se. Chegou à porta, postou-se à janelinha e, com um grito fanho, chamou o guarda.
Ao ver a cena, o homem apavorou-se. Ela estava coberta de sangue, com um olhar estranho, meio assustado e, ao mesmo tempo, plácido, brilhante. Atrás dela, jazia o prisioneiro.
Chamou reforço antes de entrar na sala. Uma precaução desnecessária: ela não esboçou qualquer reação e aceitou docemente as algemas. Quando perguntada sobre o que tinha acontecido, limitou-se a dar de ombros.
Depois, seu advogado argumentaria que ela agiu sob forte pressão emocional e em legítima defesa pois o médico a atacara novamente.
Ainda assim, pela prisão em flagrante após um crime bárbaro, executado nas dependências do sistema carcerário estadual, o pedido de habeas corpus foi negado e ela ficou detida até o julgamento.
Conduzida ao presídio feminino, logo nos primeiros dias, conseguiu provocar uma forte animosidade entre as outras detentas. Embora não falasse, estava sempre emitindo sons ininteligíveis, numa ladainha sem fim e sem sentido. Alienada de seu juízo, furava filas no refeitório, recusava-se a cumprir qualquer tarefa que lhe fosse atribuída, mexia nas coisas de suas companheiras de cela, a quem tratava com desprezo e escárnio.
Quando irmã Lourdes apareceu para visitá-la, apavorou-se ao vê-la muito machucada, como resultado de uma surra dada pelas outras detentas. Chocada, quis queixar-se na direção do presídio.
Mafalda não respondeu. Seu olhar perdeu-se no vazio, aéreo, um brilho intenso e nefasto, uma ansiedade, como se vivesse à espera.
Irmã Lourdes ainda permaneceu ali, tentando encetar algum diálogo, mas a outra simplesmente abandonou o corpo ali, quase tão catatônica quanto estivera quando em coma.
Irmã Lourdes despediu-se, decidida a trazer um psiquiatra na próxima semana para vê-la.
Não chegou a concretizar a idéia. Mafalda finalmente convenceu-se de que Rubião, não só lhe negara seu amor, mas também nunca mais voltaria para ela.
No domingo, seu corpo foi encontrado, colado à parede, logo abaixo da janela. Depressiva, ela rasgou o lençol, fazendo uma “teresa”, que amarrou nas grades acima de seu catre. Na outra ponta, um laço frouxo com o qual envolveu o pescoço, saltando em seguida.
- Deve ter sido uma morte horrível... - lamentou o legista. - o pescoço não se quebrou. A morte se deu mesmo por asfixia.
- Ugh! - murmurou o investigador, massageando o próprio pescoço.
No velório, milagrosamente, apareceram alguns “amigos” de Mafalda, embora todos parecessem meio constrangidos de estar ali. Irmã Lourdes chegou a se perguntar se não eram carpideiras, pagas para chorar pela morta. Mas, pagas por quem? Pela própria Mafalda, talvez. Ela seria bem capaz disso... Irmã Lourdes já antevia as orações que teria que fazer em penitência por esses pensamentos impuros, quando um sujeito subiu ao púlpito e começou a celebrar um culto de despedida à morta:
- Senhor! - pediu ele - Recebe em teu reino nossa irmã, que parte hoje ao encontro de seus entes queridos que já nos deixaram. Perdoa os seus
pecados, sabedor que és de suas tantas qualidades: gentil, carinhosa, generosa, humilde, benevolente...
Irmã Lourdes começou a se remexer na cadeira, irrequieta.
- O que houve, irmã? Parece incomodada. - comentou o padre, sentado ao seu lado.
- Oh, padre! O senhor ouviu o que ele disse? Será que estamos mesmo no enterro da Mafalda?
- Irmã! Terei que lhe passar nova penitência?
- Não precisa, padre! A própria Mafalda tem se encarregado de me castigar...
- Mafalda? Como, minha filha?
- Tem me aparecido em pesadelos terríveis...
- Meu Jesus! E o que ela faz? Assombra você?
- Pior, padre!
- Como pior, filha?
- Ela fala, padre! Ela fala!
Nena Medeiros e Gy Emygdio
Enviado por Nena Medeiros em 16/09/2011