Sherazade e a Proteção Animal
Ao saber-se traído, o rei persa Shariar mata a esposa infiel e seu amante. A partir daí, todos os dias, desposa uma nova mulher e, na manhã seguinte, manda executá-la, tornado-se o primeiro serial killer de que se tem notícia.
No início, até que foi bom, já que a mãe natureza é uma machista que faz nascerem três bebês cor de rosa para cada azul, enlouquecendo solteiras e tirando o sossego das casadas, mas, com o passar dos anos, a situação se torna insustentável. O sujeito estava eliminando o mulherio do país.
O vizir, encarregado de conseguir esposas para o rei, num nepotismo às avessas, escondia a filha Sherazade das vistas do seu senhor e entrou em desespero quando a mocinha se ofereceu para acabar com essa loucura.
Garota esperta, a Sherazade!! Com criatividade e astúcia, seduziu o rei, contando-lhe fantásticas aventuras que o deixavam sempre na expectativa do “próximo capítulo”, aproveitando-se da noveleira condição humana de ser e inspirando seguidores como Gilberto Braga ou J.J. Abrams, o criador de Lost. A diferença é que a audiência de Sherazade pretendia matá-la no início da novela, mudando de idéia no decorrer dos episódios. Exatamente ao contrário da de JJ.
De certa forma, lidar com a proteção animal se parece um pouco com a vida de Sherazade antes do primeiro conto, antes de sua noite de núpcias, antes de ela ter decidido oferecer-se para desposar o rei, mesmo sabendo de sua predileção pela condição de viúvo.
Abraça-se esta missão com alguma ideia do que pode ser feito para mudar uma realidade triste que precisa muito ser mudada como é a situação dos animais no Brasil, onde é forte a cultura de que eles existem para nos servir e que são vidas inferiores que podem ser eliminadas quando não têm utilidade. São inúmeros os casos de maus tratos, abandono, exploração...
A atuação do governo sobre o assunto é tímida. Há órgãos especializados: DEMA, IBAMA, e no MP, a PRODEMA que recebem denúncias e dão o encaminhamento adequado, dentro, claro, de suas limitações, que são ainda maiores do que as que tolhem a ação de todo o poder público no País. Faltam recursos, pessoal, equipamentos, viaturas e, na maior parte das vezes, só o que se faz mesmo é dar orientações, dificilmente conseguindo-se a punição dos infratores.
E é aí que entra o terceiro setor, na forma de protetores de animais. São grupos mais ou menos formais, ou, ainda, indivíduos solitários, muitas vezes, tristes. Sim. É difícil envolver-se com a proteção animal sem acabar se tornando um pouco triste. Uma vez engajado nesta luta, torna-se uma antena para as desgraças que nossos semelhantes proporcionam aos seus irmãozinhos de pelos ou penas. Diante de cenas como a do peão de boiadeiro quebrando a coluna de um bezerro numa arena cercada de jovens eufóricos, perde-se um pouco a fé na humanidade, chega-se a preferir um mundo sem os tais bípedes implumes com o teleencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor. É o princípio da loucura de Shariar.
Para não cair em depressão, acabamos nos tornando um pouco Sherazades. A nossa sobrevivência, ao menos mental, e a de tantas outras vidas dependem do exercício diário da criatividade. Todos os dias, inventamos soluções para os problemas enfrentados, o combate aos maus-tratos, abandono e exploração, o incentivo às adoções, à castração e à vacinação, a orientação ao cidadão comum, a busca de apoio do educador, da mídia e, principalmente, do poder público pela criação de leis específicas e dos mecanismos para que elas sejam cumpridas. Todos os dias, nos repetimos sobre o quanto é importante fazer bem o que nos propusemos a fazer, conscientes de que não é possível fazer tudo, é impossível salvar todos, mas há muito que pode ser feito, há muitas formas de ajudar...
Como a esperta filha do vizir, partilhamos os fatos e contamos histórias. Muitas histórias, romanceadas ou não, para conquistar novos adeptos que nos ajudem a dividir um pouco o trabalho, os custos, as angústias.
Histórias, com a de Simbad, um simpático cãozinho, resgatado das ruas após um atropelamento. Com uma fratura na coluna pressionando a medula, ele não andava mais. A história desse rapaz, tão comum, em nossas cidades, emocionou centenas de pessoas que contribuíram para que ele fosse operado. A cirurgia correu bem e todos esperavam ansiosos o resultado, a notícia de que o pequenino teria uma vida normal, encontraria um ótimo lar, onde uma família amorosa cuidasse dele para que ele nunca mais passasse por tanto sofrimento. De repente, em volta de Simbad havia magia! A magia da esperança e do amor, energias mais do que especiais para ajudá-lo a superar tudo e, então, Simbad levantou-se. Levantou-se, deu três passinhos e voltou a cair, ardendo em febre. A informação desabou sobre todos como chuva ácida. A tristeza era grande. O que teria o cãozinho? Novos exames, e o diagnóstico: cinomose. Para quem não conhece, é quase uma condenação à morte, poucos são os cães que sobrevivem a uma cinomose sem seqüelas. Mas, depois de chegarem tão longe, os protetores não desistiriam assim de Simbad e começaram logo o tratamento. E então... E então, ainda estamos cuidando dele. Amanhã, esta história continua!
Texto produzido para o Sarau das Mil e uma Noites, realizado ontem, dia 05/09, na Biblioteca Demonstrativa de Brasília (BDB), com o apoio do Sindlegis, da BDB e do TCU.
Sabendo-me protetora de animais, Marco Antunes, organizador do Desafio Literário da Câmara dos Deputados e do Sarau, me deu este lindo presente: permitir-me que o assunto embora ligado à metáfora iconográfica de Sherazade e as Mil e Uma Noites, tratasse de animais.
Assista a leitura dele no Youtube:
http://www.youtube.com/watch?v=2qIPzUbdCJo
Um esclarecimento: Simbad é uma personagem fictícia. Sua história, não. É a compilação de algumas histórias reais: Billie, Betão, Joly, Floquinho, Princesa, Susy e tantos outros que mil e uma noite seriam pouco para contar todas.