Belo Horizonte, 13 de janeiro de 2009
Querida Mercedes,
Saudades de nossos encontros e cantos. Lamentei muito estar fora do Brasil quando de sua apresentação no Vivo Rio. Ainda em viagem, recebi resenhas e notícias dos amigos e críticos daqui, pessoas que sabem do carinho que lhe guardo e que imaginaram o quanto eu gostaria de estar presente. Pena mesmo, esta nossa incompatibilidade de agendas.
Fiquei preocupado com sua saúde. Das mensagens recebidas, quase todos dedicaram algumas linhas para comentar sua aparência debilitada, chocados diante do fato de você ter permanecido sentada durante quase todo o show. Comentaram até que, em alguns momentos, você pareceu ler algumas letras. Duvidei. Quando a vi cantando pela primeira vez, fiquei intimidado com a grandeza de sua voz, que se refletia em você. Seria capaz de jurar que, naquele palco, você tinha uns três metros de altura! Você era uma rainha, a rainha da América Latina, coração de nossos países, eu, um súdito encantado. Quando, ao fim do espetáculo, Vininha quis que fôssemos ao seu camarim, tive medo! Como poderia ousar colocar-me diante de você e do gigantismo de seu talento, sua carreira, seu ativismo político? Você era uma guerreira amada por mim e pelo povo americano. O poetinha segurou minha mão e me levou como se eu fosse uma criança. Ainda estava inseguro, quando ouvi seu grito feliz: “Milton!”. Juro, Mercedes, procurei em volta para ver se havia outra pessoa merecedora de tão calorosa saudação, foi-me difícil acreditar que era comigo. Ah, minha amiga... Se no palco, você tinha três metros de altura, ali, no seu camarim, você tinha muito mais e, o mais incrível: fez-me sentir como se eu também fosse assim, enorme. Fiquei surpreso que você conhecesse tanto de mim, extasiado com todos os elogios que você fez à minha voz, ao meu repertório, ao meu trabalho. Lembro, como se fosse hoje, você dizendo, empolgada: “Somos hermanos, Miltito! Hermanos del pueblo! Yo conozco su lucha! Sé que es como la mía!”
Ah, Mercedes! Que bela amizade. Logo gravávamos Volver a los 17, da Violeta Parra. Lembra? Voltar a ter dezessete anos, com a sabedoria de um século, para perceber que os sentimentos ensinam mais que o conhecimento. Voltar aos dezessete e virar um anjo. Eu, encantado com essa mensagem, queria enfatizá-la. Você, com a simplicidade de quem sabe que a vida se constrói aos poucos, achava que o mais bonito era mesmo a imagem do musgo tomando a pedra. No fim, você me enredou, enredou como a hera tomando o muro e acabei lhe dando razão. Sempre foi assim.
Depois daí, tantas outras parcerias... Sueño con serpientes, Corazón americano...
Enfim, passaram-se os anos, passaram-se as horas e fomos ficando velhos. Você, com seus setenta e três, eu com sessenta e seis e não temos mais o mesmo vigor. Disseram que nem sua voz tinha a mesma firmeza de antes. Rezei para que fosse maldade de algum crítico impiedoso, mas até alguns de nossos grandes amigos confirmaram, com pesar.
Ainda assim, minha amiga, todos foram unânimes em afirmar que seu show emocionou; que seu disco Corazón Libre, que o inspirou, traz canções belíssimas, reflexo de sua carreira consistente e de sua combatividade pela integração dos povos sul-americanos e em oposição às ditaduras e toda forma de opressão.
Soube que, além de Volver a los 17, você também cantou Coração de Estudante, Cio da Terra e Maria Maria! Quanto orgulho, ouvir-me ainda em sua voz! Que alegria saber que você se levantou justamente no início desta minha última canção em homenagem às mulheres e levou a platéia inteira ao êxtase de dar Gracias a La Vida por ter a oportunidade de vê-la se apresentando, ainda que debilitada, mas sempre uma mulher impressionante no poder de sua voz, no repertório que envolve o público com a promessa de melhores dias.
Enfim, minha cara amiga, depois dessas notícias, tenho andado saudoso de você e de nossas parcerias. Tão saudoso que estou trabalhando em uma nova música para nós cantarmos juntos. Você me conhece... Sabe que, quando a coisa bate fundo no meu peito, eu fecho os olhos, baixo a cabeça e não paro mais até terminar. Acho que você vai gostar. Resgato nessa letra, um pouco de tudo em que acreditamos; da importância de ver o mundo pelos olhos das crianças, do povo, da esperança. Reserve uns dias, em meados de outubro, que é quando poderei ir ao seu encontro em Buenos Aires.
Até lá, cuide-se bem.
Cariño,
Bituca
Cariño,
Bituca
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“rainha da América Latina, coração de nossos países” é do próprio Milton, em homenagem a Mercedes, quando de seu falecimento, nos primeiros dias do mês de outubro de 2009.
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Texto escrito para o 7° Desafio Literário da Câmara dos Deputados
Categoria Cartas - Etapa 6.
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Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 22/08/2011
Alterado em 24/08/2011
Alterado em 24/08/2011
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