A BRUXA DO CERRADO
(EM CO-AUTORIA COM GY EMYGDIO)
Noite de lua-cheia. Os vizinhos já se benziam quando o astro chegava à plenitude. Era prenúncio de coisa-ruim.
Não que a lua tivesse culpa, coitada! Porém, sua aparição era o convite para que a bruxa ficasse à solta.
Ouviam-se gargalhadas durante toda a noite, e uivos, de arrepiar os cabelos... Uma luz dançava pela mata, sem cessar... E os vizinhos sabiam do que se tratava ou, pelo menos, imaginavam. Porque saber mesmo ninguém queria. Ver, muito menos. Mantinham distância da bruxa. Eram dela os risos estridentes, era ela que carregava a tocha acesa, pelos caminhos da mata do seu sítio. Dizia-se, à boca pequena, que ela dançava e rodopiava, nua, por esses caminhos. E era seguida pelos elementais que habitavam por lá. Pequenos seres da natureza que se divertiam com os folguedos da bruxa.
Nas trilhas abertas pela feiticeira, havia sete encruzilhadas, sete pontos onde ela invocava os espíritos. Cada local era dedicado a uma entidade diferente, conforme o que pretendia obter. E ali colocava pedras de várias cores, marcando cada cor uma finalidade. Dizia que eram locais de "cura".
Em outras noites, convocava as demais feiticeiras, que vinham de toda parte. Faziam fogo nas clareiras do terreno e, de mãos dadas, corriam em volta, possessas, gritando e rindo. Falavam coisas sem nexo, numa língua estranha. Suas sombras, aumentadas pela luz das chamas, projetavam-se nas árvores retorcidas do cerrado, misturando-se a elas em aterradoras figuras. Assim - diziam - exorcizavam os demônios.
Dentro da casa, havia um altar. Coisa feia. Um pano preto cobria a mesa onde se dispunham objetos macabros: a caveira no centro, rodeada de velas pretas, tinha os olhos vazios da morte. A coruja empalhada e a cobra representavam o reino animal. Um baralho ensebado, fitas vermelhas, um punhal afiado, um pequeno caldeirão onde eram queimadas ervas. Pedras coloridas e amuletos diversos compunham o altar onde a bruxa realizava os seus rituais de consagração aos espíritos do mal.
Mulher esquisita, vivia com duas filhas, franzinas e pálidas, que lhe seguiam as pegadas. Aprendiam com a mãe a arte da feitiçaria. Não se lhe conhecia marido. Ela entrava e saía do sítio sem falar com ninguém. Nem bom dia, nem boa tarde. Os vizinhos também não faziam questão de saudá-la. Baixavam a cabeça, se acontecia de a encontrarem pelos caminhos. As filhas raramente saíam de casa. O seu sítio não tinha muros nem cercas. Nem precisava. Quem ia entrar lá? Todos tinham medo da bruxa. Alguns afirmavam tê-la visto montada em uma vassoura, voando no céu. Mas isso era coisa dos matutos sem idéia.
Loana - assim se chamava a feiticeira - tinha sonhos frequentes que a perturbavam. Aparecia-lhe um anjo, todo vestido de branco, que a repreendia, dizia-lhe que parasse com esses trabalhos do mal, que isso ainda seria a sua tragédia. Ela, no sonho, ria muito e fazia pouco caso. Mas acordava sobressaltada e alagada em suor, e esse dia já não lhe corria tão bem. Ainda assim, seguia a semear desgraças.
Numa dessas manhãs, depois de ter sonhado com o anjo, mandou a filha mais velha à cidade comprar incensos que lhe faltavam para conjurar os demônios, seus conhecidos. A filha não voltou para casa. Foi morta por um ônibus que perdera o freio e bateu em cheio na menina.
Loana se desesperou: nessa noite, ouviram-se uivos dolentes até o amanhecer.
A bruxa voltou-se mais ainda para a feitiçaria e para a filha que lhe restava. Queria fazer dela uma feiticeira exemplar para, juntas, vingarem a morte da primogênita. Odiava o mundo lá fora, que lhe roubara a filha querida.
Porque os pesadelos continuassem, com o anjo insistindo sobre o perigo que a companhia dos elementais e de todas aquelas forças maléficas representava em sua vida, Loana passou a usar ervas poderosas que lhe produziam um sono profundo e sem sonhos. Ainda assim, acordava amargurada com imagens de mortes sangrentas, corpos mutilados, cenas que certamente lhe haviam sido impingidas durante o repouso.
Desesperada, Loana conjurava mais intensamente seus “amigos”, realizava sabaths e sacrifício de animais, que pedia à filha, Gedeone, para comprar entre os vizinhos, pequenos chacareiros. A jovem havia se tornado uma bela mulher, cobiçada por quem lhe pusesse os olhos. Os roceiros, porém, jamais se atreviam a dirigir-lhe mais do que algumas palavras, sabendo-a herdeira dos poderes da mãe. Não era o caso de seu assassino. Este lhe desconhecia as origens quando a viu caminhando sozinha pela estradinha de terra e não pode conter seus instintos animais diante daquela fêmea altiva, de aparência selvagem. Subjugá-la não foi fácil, apesar da diferença de porte entre eles, mas não conseguiu consumar o estupro, perturbado pela intensidade do olhar dela. Frustrado e enfurecido, apertou-lhe o pescoço, até ouvi-lo estalar entre seus dedos. Deixou-a jogada lá mesmo, semi-nua, os olhos abertos e fixos em algum ponto do firmamento. Esse crime não ficaria impune, claro. O pobre homem nunca mais teve sossego. Atormentado pelos demônios que acompanhavam Gedeone e sua mãe, suicidou-se pouco tempo depois.
Loana, preparando-se para o Sabath daquela noite, sentiu-se repentinamente angustiada, visões macabras sucedendo-se em sua mente, como num filme. Quando vieram trazer-lhe a notícia, ela não precisou ouvir. Já sabia o que acontecera.
Não disse nada, não fez nada. Deixou que as demais feiticeiras cuidassem do funeral.
A partir desse dia, Loana não fez mais reuniões, não saiu mais de casa, foi como se ela tivesse se mudado dali. Não se ouvia mais seu gargalhar nas noites de lua-cheia, a luz da tocha se apagou. A bruxa ficava horas a fio, dias inteiros, na frente do seu altar, fazendo mandingas e clamando aos espíritos.
Até que eles atenderam.
A lua ia alta no céu, luminosa e bela, quando os vizinhos ouviram sons vindos da chácara, que parecia estar na mais frenética agitação. Poderia-se supor que havia lá mais de uma centena de feiticeiros enlouquecidos, cantando, gritando e rindo, histéricos, embora não houvesse um único carro parado à porta da chácara.
Foi como ter voltado aos velhos tempos. Ela, as filhas, as feiticeiras, estavam todas ali. Dirigiram-se à mata, em alegre algazarra, portando tochas que iluminavam o sítio, transformando a noite em dia. Até os elementais saíram de suas tocas, das árvores que habitavam, de dentro da terra, e acompanharam com espanto a festa inesperada.
À frente do cortejo, ia Loana, os cabelos esmaecidos e soltos ao vento, dançando e rodopiando ao som das próprias gargalhadas, nua, possuída pelos demônios que tanto invocara.
Os outros distribuíram-se pelos caminhos do sítio, concentrando-se principalmente nas sete encruzilhadas, onde fogueiras monstruosas lançavam suas chamas aos céus, enquanto Loana, como que em transe, afastou-se do grupo, adentrando a mata. Sozinha, posicionou-se num ponto central entre as enormes fogueiras. A cantoria aumentou de ritmo e volume, tornando-se impossível perceber os vocábulos que a compunham.
As chamas espalharam-se pelas trilhas. Se fosse possível olhar o sítio de cima, elas formavam uma gigantesca estrela de sete pontas, as sete ligadas ao centro, onde Loana se postara. De repente, o chão começou a trepidar e uma enorme cratera abriu-se aos pés da bruxa. De dentro dela, surgiram garras de fogo, línguas incandescentes que a enlaçaram. Neste momento, Loana despertou de seu torpor e deu-se conta de estar sendo arrastada para dentro da terra. Lutou com todas as suas forças, mas elas eram muitas e já a dominavam completamente. Às chamas que iluminavam as trilhas ao seu redor vieram juntar-se labaredas que saíam do interior da terra, envolvendo-a. Loana urrava de dor e medo, até desaparecer completamente, tragada pelo inferno. As chamas apagaram-se e fez-se silêncio. Não fosse pelo enjoativo cheiro de enxofre, seria difícil acreditar que, há apenas alguns instantes, aquela mata tão pacífica fora palco de tanta movimentação paranormal.
A bruxa não foi mais vista e, na propriedade, reinava o mais absoluto silêncio. Nem os passarinhos voavam por ali.
Anos mais tarde, convencidos de que ela jamais retornaria, a família tentou vender a chácara, sem sucesso. Qualquer potencial comprador era misteriosamente afastado. Houve mesmo um que estava quase fechando negócio e, em visita à propriedade, foi derrubado de seu cavalo que estacou, aterrorizado. O que o animal viu, ninguém sabe.
Com o tempo, o mato invadiu a casa, destruindo-a por completo. Das antigas instalações só restaram ruínas enegrecidas e tristes. E, no meio delas, a caveira, única remanescente do altar, fitava o nada, com os seus olhos vazios. Às vezes, ouvem-se uivos e lamentos ecoando entre as árvores e há gente que jura que, em noites de lua cheia, vê a bruxa sobrevoando a chácara, montada numa vassoura.
Mas isso, certamente, é coisa de matuto sem idéia!
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Este texto faz parte do Exercício Criativo - De Grão em Grão
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