Textos



Terapia


Quando ele apareceu para a primeira sessão, achei-o terrivelmente pálido e sem vida. Cheguei a pensar em despachá-lo para um psiquiatra. Talvez ele estivesse depressivo, uma boa dose de citalopram lhe faria bem. Porém, assim que se acomodou na poltrona, foi ficando mais confortável e começou a falar:

– Meu problema, doutor, é que sou aficionado por literatura.

Discordo que isto seja um problema. Afinal, eu mesmo sou um leitor inveterado e convivo bem com isso. Porém, precisava deixar que ele mesmo chegasse a essa conclusão e por isso, permaneci calado.

– Sim... – respondi apenas, como que o incentivando a prosseguir, enquanto desenhava abismos no bloquinho.

– Isso não seria exatamente um problema...

Ahá! – pensei.

– ... mas depois de me ouvir, vai perceber que é, no mínimo, preocupante..

– Você pode ser mais específico?

– Sim, claro! Tudo começou na minha infância: meus pais brigavam muito.

Abandonei a página cheia de abismos e resolvi começar a anotar. Agora sim, surgiam os primeiros motivos para análise.

– E eu me escondia no quintal, com meus livros e gibis.

Anotei: “alheamento”.

– Queria ser o Cebolinha, tinha inveja dos pais dele que nunca brigavam. Nesta ocasião, comecei a trocar as letras...

– Como o Cebolinha?

– Sim! Trocava o R pelo L.

– E seus pais?

– Acho que nunca repararam. Eu só fazia isso quando eles brigavam e nessas horas eles nem lembravam que eu existia.

– Entendo. – murmurei, enquanto anotava: “pais omissos”.

– Mesmo? Então me explica.

Olhava pra mim de forma angelical, como se esperasse mesmo uma explicação.

– Ainda é cedo para um diagnóstico. Vamos prosseguir, por favor.

Ele fez um muxoxo, em sinal de desapontamento. Em seguida, retomou:

– As coisas ficaram piores quando passei para os livros de aventuras. Robinson Crusoé, nem tanto. Tirando o Sexta-feira que me rendeu algum bulling na escola.

– Bulling?

– Sim! Virei o “doidinho”. Como eu ia adivinhar que ninguém o via?

Sorri. Felizmente ele estava distraído, olhando as mãos, que apertava, inquieto.

– Peter Pan foi pior.

– Por quê?

– Ele voa! Quebrei o braço ao jogar-me da janela do quarto.

Cheguei a pensar que fosse brincadeira dele, mas sua expressão era de uma pureza quase infantil. Durante o restante daquela sessão, ele contou-me mais algumas travessuras de sua infância sempre associadas aos seus personagens favoritos. Ainda estava pouco convencido de que ele tinha um problema, exceto uma imaginação fértil e talvez, suscetível demais. Muito provavelmente, devido à relação conflitante dos pais.

Nas sessões seguintes, apenas as personagens tornaram-se mais adultas, à medida que meu paciente amadurecia. Apaixonou-se por uma moça quando lia Dom Casmurro. Previsível: rompeu com ela, certo de estar sendo traído pelo melhor amigo.

A vocação profissional foi várias vezes alterada, conforme os livros que lia. Quis ser médico como Jivago, astrônomo como Segan, professor, ator, filósofo... E, ao contrário das crianças que trocam de profissão dependendo de quem convide à brincadeira, cada uma de suas escolhas era definitiva e firme como se sempre houvesse sido aquela, fazendo-o abandonar cursos universitários quase às vésperas da formatura.

Seus casamentos foram igualmente desastrosos. No primeiro, lia Otelo. No outro, Dom Juan. No último, Primo Basílio e enlouqueceu a pobre esposa, trocando-a por uma prima solteirona. Felizmente, evitou os filhos, pelo mesmo motivo pessimista de Brás Cubas.

Naquela manhã, ao vê-lo entrar para a sessão, achei-o mais abatido do que nunca e peguei o cartão do doutor Simão, que certamente lhe receitaria algum antidepressivo.

Ele olhou para mim e para o cartão e disse que, talvez isso fosse desnecessário.

– Sinto-me bem melhor e, agora, falta pouco para lhe contar.

Apontei-lhe a poltrona, para onde ele se encaminhou pesadamente. Jogou-se nela, visivelmente cansado.

– Os Sofrimentos do Jovem Wether. – disse, após alguns minutos de um irritante silêncio.

Cocei o queixo. O título me era familiar.

– Goethe! – exclamei, orgulhoso da minha excelente memória.

– Isso! Já leu?

– Sim! Há muitos anos..

– Lembra-se da história?

– Vagamente. Ele se suicida ao final, certo?

– Exatamente.

Imediatamente, compreendi: ele lera o livro e agora estaria pensando em suicídio.

– Vamos falar mais sobre isso... – pedi, enquanto pensava numa forma de dissuadi-lo.

– Tarde demais... Meu tempo acabou.

– De forma alguma! A sessão recém começou e...

– Obrigado, doutor. Nossas conversas me ajudaram muito.

Levantou-se. Levantei-me também, tentando antecipar seu movimento em direção à janela. Ele sorriu.

– Eu disse que era tarde demais.

E desapareceu, diante dos meus olhos.

Corri até o lugar onde ele estivera, apalpei o couro gelado do sofá onde ele se sentara. Saí da sala e perguntei à recepcionista se o vira passar.

Ela olhou para mim surpresa:

– Quem?

Fui até o computador e pesquisei seu nome. Logo encontrei a notícia que já sabia que encontraria. Ele estava morto há mais de seis meses. Foi encontrado na garagem de casa, sentado no banco do motorista, o motor do carro ligado e, no colo, o livro de Goethe, aberto na passagem do suicídio do protagonista.

Um arrepio percorreu-me a espinha. Levantei-me. Tirei da pasta o livro que estava lendo, retirei o marcador, fechei-o e o recoloquei na estante.

Peguei o bloquinho. Anotei: Alan Poe, nunca mais.


*****

Texto escrito para o 7° Desafio Literário da Câmara dos Deputados
Categoria Contos - Etapa 4.
Clique aqui para ver o tema - provocação.



Se você é psicólogo e ficou, assim como o meu irmão, ávido por corrigir minhas incongruências nas atitudes do terapeuta do texto, peço que me perdoe e entenda-as como liberdade poética.
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 17/08/2011
Alterado em 17/08/2011


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