A Santa
– Valha-me Deus, meu são José!
– Te acalma, criatura! Que gritaria é essa?
– Veja, senhor prefeito! Nossas contas foram rejeitadas no tribunal!
– E daí?
– Podem lhe cassar!
– Meu mandato tá acabando mesmo... Renuncio antes. Depois, me candidato a deputado estadual, dou uma choradinha na TV e pronto. Posso até agradecer a propaganda gratuita!
– O senhor pode ir preso!
– E desde quando político fica preso neste país?
– Mas, senhor... Se isso chegar aos jornais, o povo vem fazer barulho aqui na frente da prefeitura!
– Fecho as portas e janelas, ué!
– Mas, o senhor não está tentando botar a dona Dorinha como sua sucessora?
– Ih! Droga! É mesmo!
– Então!?
– É! Melhor abafar.
– Mas... Como?
– Temos que distrair a atenção dessa mídia oposicionista! Quem sabe uma nova inauguração...
– A última obra que tínhamos era o hospital que o senhor ficou segurando quase seis meses para só inaugurar perto das eleições.
– E a tal ala de RX que não deu para entregar na época?
– Continua não dando.
– Mas, temos os equipamentos...
– Sim! Mas o seu sobrinho, quando fez a especificação no edital, esqueceu de verificar a exigência da estrutura da sala de exames. O teto não suporta o peso da máquina.
– E por que não reforçaram a estrutura ainda?
– Ah! Obra assim ninguém quer: valor baixo, a gente demora a pagar e ainda tem a propina.
– Ainda essa inana? Põe esse troço no chão!
– Senhor...
– Sim! Eu sei, eu sei! O garoto é um idiota, mas é filho da minha irmã. Não ia deixar na rua, ia?
– Não, senhor, claro que não.
– Bom... Já que não dá para inaugurar aquela joça, precisamos pensar em alguma outra coisa.
– Podíamos...
– Diga!
– Não, não... Isso seria loucura. Melhor não!
– Ah! E se?...
– Sim?
– Não, acho que não daria certo!
– Talvez...
– Esquece, Barnabé! Melhor começarmos a pensar nas desculpas...
– Ai! Meu são Crisóstomo! Um discurso, por favor!
– Crisóstomo!? Isso lá é nome de santo?
– Ô! Se é! E, no nosso caso, muito adequado. É padroeiro dos palestrantes, educadores e pregadores.
– Ei! Taí!
– O quê?
– Uma coisa que vai gerar muita discussão e dar um pouco de sossego pra gente!
– Diga logo, senhor! Estou angustiado com isso tudo.
– Vamos canonizar alguém!
– Canonizar? Você diz... Transformar em santo?
– Isso!
– Mas, senhor!? Quem?
– Que importância tem isso? Qualquer um! Não queremos um santo de verdade. Só queremos retirar da berlinda um pobre pecador.
– Pobre, senhor?
– Muito mais do que eu queria, Barnabé, muito mais! Mas, enfim, só precisamos de um pouco de barulho.
– Mas esse negócio de canonização é demorado! Pode levar anos!
– Por isso mesmo! É a solução ideal para todos os nossos problemas. Sempre que se fizer necessária a operação abafa, a gente cutuca o vaticano. Eles vão dar lá a resposta deles e a gente coloca na mídia, faz o maior alarde. Lança corrente de apostas... Arriscado dar até algum dinheiro!
– Senhor!!
– Entendi. Menos, menos! Você tem razão! Mas, agora, precisamos do nome do santo.
– Crisóstomo?
– Não, criatura! O nosso santo. O canonizável!
– Ah! Que tal uma das beatas? Aquelas dali vivem enfurnadas na igreja!
– Fazendo intriga, né? Ninguém aguenta aquelas mulheres. Por isso enviuvaram cedo! Acho que os maridos preferiram a calma dos sete palmos abaixo da terra.
– O padre, então?
– Outro que não vale nada!
– O que é isso, senhor? O padre é um santo homem.
– Se já é santo, pra que canonizar?
– Err... Era modo de dizer, senhor!
– Eu sei, eu sei... Desculpe! É que esse sujeitinho me irrita. Vive fazendo oposição. Arriscado virar mesmo santo e ainda me atazanar mais a vida.
– Isso é verdade. Exceto por um detalhe.
– Qual?
– Tô lendo aqui no Google. Não existe santo vivo.
– Maravilha! A gente mata ele! Dois coelhos com uma cajadada.
– Senhor...
– Estou brincando, Barnabé! Sou pilantra, mas não sou assassino. Por outro lado, é até melhor! Todo mundo vira santo depois que morre! Vamos dar uma olhada nos jornais antigos. Deve ter alguém venerável na história dessa cidade.
Muitas horas depois...
– Aqui, senhor. Selecionei alguns nomes.
– Diga lá.
– Dona Sebastiana de Souza.
– E o que ela fazia?
– Ela pegava os bichos abandonados nas ruas, cuidava, alimentava... Tinha mais de sessenta bichos e...
– Barnabé! Desde quando cuidar de bicho é virtude? Vê o próximo.
– Doutor Soares Pinto. Médico que fazia muito atendimento por caridade e...
– Esse nome não ajuda, né, Barnabé? Vê lá se alguém vai querer venerar um santo Pinto!
– A mulherada...
– Barnabé!...
– Bom... O próximo é um padre. Salustiano.
– Gostei. Padre Salustiano. É um nome forte, igual a Crisóstomo. O que o gajo fez?
– Ah! Era um homem muito bom. Fazia sermões lindíssimos, pregava o amor, a caridade... Era capaz de viajar léguas no lombo do burro para dar uma extrema unção...
– Não fazia mais que a obrigação, mas, vá lá! Alguém ainda fala dele?
– Não.
– Hum... Isso é mau. Quem é o próximo?
– Próxima. Dona Maria Madalena da Conceição.
– A dona do puteiro?– Ela.– Você tá louco?
– Não, senhor! Veja. Ela foi dona do cabaré por mais de trinta anos. No seu estabelecimento se esbaldaram os homens mais ricos e também os mais pobres da cidade. Ela fazia questão de atender a todos muito bem.
– Mas, explorando a prostituição! Barnabé! Um processo desses não sai nem daqui da diocese!
– Não, senhor! Deixe-me terminar. Aos sessenta anos ela largou tudo. Dizia ter tido uma visão. E, a partir daí, tornou-se muito virtuosa: deu todo o dinheiro que tinha para ajudar os humildes, fazia partos, ensinava as mães a amamentarem, controlava carteira de vacinação das crianças, obrigava os pais a botarem os meninos na escola, ensinava os analfabetos... Chegou a evitar que uma família vendesse a filha mocinha para um coronel! Foi lá, comprou a menina e a mandou para ser criada por uns parentes no interior. Diz que a moça hoje é médica, bem casada.
– Não sabia de nada disso. Depois que a zona fechou, nunca mais andei por lá.
– Senhor...
– Que foi? Eu ia muito lá! Fazer campanha, você sabe. Político não escolhe freguesia.
– Ah, sim!
– Bom... Essa é mais recente. Dá pra gente explorar melhor. Deve ter quem se lembre dela.
– Sim! Tomei a liberdade de fazer um trabalho de campo. Alguns se lembram, sim.
– Feito. Liga pro bispo. Vou falar com ele.
– O senhor acha que o bispo?...
– Ele me deve uns favores.
Um pouco mais tarde...
– Tudo certo. Já conseguimos dar entrada no processo.
– E quanto ao probleminha da prostituição?
– O nome ajudou. Santa Maria Madalena também era moça de vida fácil!
– Certo! E agora?
– Junta toda a papelada e manda pra diocese.
– E o milagre?
– Que milagre, homem?
– Precisa de um milagre para pleitear a santidade.
– Deixa isso comigo. Arruma uns boatos de milagre dela e solta por lá. Se precisar, paga uns pé-rapado para dar testemunho.
– A Igreja investiga, senhor.
– Já falei, Barnabé! Deixa comigo.
Dias depois...
– Senhor prefeito! Senhor prefeito! Tá aqui no jornal!
– O quê, homem? Vai dizer que o tribunal de contas...
– Não! O processo da santa! Na capa! Já tá na arquidiocese!
– Jura? Mas já? Deixa eu ver!
– Maravilha! Com milagre e tudo! Como o senhor conseguiu isso?
– Depois que você espalhou os boatos, ficou fácil. O povo começou a rezar para ela. Mandei um investigador pra lá que ficou sabendo de um ou outro caso de doença, sondou as famílias e pimba! Achou uns que tinham rezado para ela. Mandei médico disfarçado, remédio escondido na comida, na bebida e pronto. Curados, graças à santa Maria Madalena da Conceição!
– Incrível!
– Incrível para você, que é um descrente, Barnabé! Se a fé move montanhas, o dinheiro move é o mundo inteiro!*****
Texto escrito para o 7° Desafio Literário da Câmara dos Deputados
Categoria Contos - Etapa 2.
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Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 03/08/2011
Alterado em 03/08/2011