A Morte e a Morte de Silvano Silva
Morreu. A causa mortis importa pouco. Resta o fato. Morto estava e enterrado, quando acordou no caixão. Primeiro, a estranheza. Depois, o pânico claustrofóbico. Ignorando a própria condição extinta, apavorou-se à possibilidade de ficar sem ar. Enfim, aceitou a realidade óbvia: não respirava. Era um cadáver, ainda que muito diferente do que imaginava, já que se sentia bem vivo. Lembrou dos zumbis. Perguntou-se se seria um deles. Talvez um vampiro. Com cuidado, levou uma das mãos à boca, para apalpar os caninos. Pareceram-lhe normais. Então, seria um zumbi. Ou um fantasma, embora se sentisse muito preso ao corpo, incapaz de libertar-se da própria carcaça, que dirá do forte pinho que compunha a urna à sua volta.
Entediou-se ali, sem ter o que fazer. Nenhum desconforto. Apenas a aflição do tempo passando, uma crescente inquietação. Lembrou-se dos filmes sobre mortos-vivos que arrebentavam seus caixões, as mãos putrefatas surgindo da terra, em frente à lápide. A idéia lhe pareceu atraente, surgiria em grande estilo. Quem sabe, ali ao lado não estivesse acontecendo um outro enterro? Seria mesmo divertido ver o rebuliço provocado por sua aparição triunfal, as carnes podres caindo dos ossos... Forçou a tampa do caixão com as mãos, depois, com o ombro, até que sentiu um ponto de vulnerabilidade. Sorriu, entusiasmado, e empurrou com mais força. Logo, percebia ser possível levantar-se cada vez mais, até que se sentou. Continuou sua luta pela liberdade, lançando os braços para cima, dobrando as pernas para concentrar os esforços em sua tentativa de levantar-se e, enfim, rompeu os obstáculos e sentiu a mão livre no ar. Logo passou a outra mão e, com as duas, puxou o corpo para fora da terra. Foi quando ouviu o grito, quase histérico:
- Êêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêê!!
Definitivamente não era um grito de pânico, mas de júbilo. Olhou em volta e viu-se cercado por um grupo entusiasmado de fantasmas que o ajudaram a levantar-se, enquanto tagarelavam, eufóricos:
- Puxa! Até que enfim!
- Achei que você não acordaria mais...
- Espero que saiba jogar biriba!
- Ou xadrez!
- Truco!
Atordoado, ele balbuciava:
- Mas... Mas... Vocês são fantasmas!
Uma das mulheres pôs a mão na cintura:
- E o que você acha que é?
- Mas, fantasmas não atravessam paredes? - duvidou ele.
Alguns riram, outros menearam as cabeças, demonstrando compreensão.
- Todos passamos por isso, amigo. Você atravessa paredes. - disse-lhe um fantasma mais idoso.
- Eu? Claro que não! Foi um custo arrebentar a tampa do caixão e cavar até aqui!
Risadinhas.
- Você não cavou. Apenas estava aprendendo a atravessar as barreiras sólidas.
- Mas...
Antes que ele prosseguisse, o fantasma apontou a campa de onde ele saíra, intacta.
- Seu corpo ainda está lá.
Leu a lápide: “Silvano Silva”. Calou-se, ainda confuso. Depois, perguntou:
- E agora? Cadê a luz no fim do túnel?
O fantasma deu de ombros.
- Céu? - o novo-morto insistiu. - Inferno?
- Não sabemos. Desde que morremos estamos por aqui e assim, vamos vivendo. Isto é... Bem, você entendeu!
Silvano olhou em volta. Todos pareciam felizes ali. Sentia-se mesmo renascido. Logo fez boas amizades, tornou-se um ótimo jogador de baralho, imbatível no jogo de Canastra. Meses depois, conheceu Adelaide, recém chegada. Apaixonou-se e todos diziam que eles realmente morreram um para o outro. Era a felicidade mais plena. Sem cobranças, horários, fome, sede. Sem trabalho, salário ou banheiro. Era mesmo o paraíso.
Então, Silvano nasceu. Como isso se deu, importa pouco. Resta o fato: estava vivo e reencarnado. Chorou.
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Este texto faz parte do Exercício Criativo - A Morte e a Morte de...
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