Textos




Abuelita


Alícia deu a notícia como se fosse boa. Surpreendeu-se com a reação da mãe:
– Como assim, “grávida”?
– Ué, mãe! Grávida do jeito que você ficou quando eu estava na sua barriga!
– Mas, filha! Ainda é cedo!
– Cedo, mãe? Tenho quase vinte e sete. Mês passado, completei dois anos de casada!
– Cedo pra mim! Vê lá se tenho idade para ser avó!
– Mãe! Você está beirando os cinquenta!
– Psiu! Fala baixo! Quer que todo mundo saiba? Nem cabelos brancos eu tenho!
– Porque pinta, né, mãe?
– Mas, Alícia... Pensa bem! Eu estou de namorado novo! Como vou dizer a ele?.
– Mãe! O Mateo foi ao meu casamento contigo!
– Então!? Só estamos juntos há dois anos e pouco! Para quem aguentou seu pai por mais de trinta...
– Ai, mãe! Vê lá se o Mateo vai ligar pra isso! Ele já tem netos há anos! E, além do mais, ele te adora!
– Adora porque eu sou jovem, inteirona e não uma – completou, com asco – avó!
– Mãe! Você está sendo ridícula!
– Ridícula!? Eu? Você é que está sendo egoísta!
– Mãe!?
– Eu te proíbo, ouviu bem? Eu te proíbo!
– Meio tarde, né, dona Manuela? Eu já estou com mais de seis semanas.
– Meu Deus! Meu Deus! Em sete meses eu deixo de ser mulher para me tornar uma velha tricoteira! – a voz embargada do choro contido.
– Ô, mãezinha... – Alícia abriu-se num abraço, entre incrédula e divertida.
Foi veementemente rechaçada:
– Me deixa! E pensar que eu... Eu acabei de pôr silicone, ouviu? Silicone! – concluiu Manuela, trancando-se no quarto aos prantos, o rosto banhado em lágrimas escuras da maquiagem escorrida. Do lado de fora, ouvia-se seu choro angustiado.
Disposta a dar tempo para que a mãe processasse melhor a novidade, a moça resolveu ir embora. Na saída, encontrou Mateo. Adiantou-lhe o assunto, certa de que ele saberia resolver o problema.
Mais tarde, telefonou. Depois de muita insistência, quem atendeu foi ele e deu logo a notícia: fariam o caminho de Santiago.
– Como é?
– Vamos fazer o caminho de Sant...
– Isso eu ouvi! Só não estou acreditando! Quando?
– Precisamos preparar umas coisas, mas assim que der. No máximo em dois meses.
– Minha mãe enlouqueceu! E você com ela! São quantos quilômetros?
– Ela queria fazer o caminho francês. São oitocentos e...
– Meu Deus do céu!
– Calma... Eu a convenci a sairmos de Pamplona...
– Quantos?
– Setecentos e pouco
– Puta que pariu!
– Ela precisa disso, meu anjo!
– Ela precisa é de calmantes! Vocês não aguentam andar tanto!
– Ei! Nós estamos malhando, sabia?
– Sei! E os atletas pretendem ficar na estrada por quantos dias?
– Uns trinta... Talvez um pouco mais.
– Mateo! Não vê que isso é pirraça da minha mãe?
– É um sonho dela, Alícia. Ela disse que tinha que fazer isso antes de morrer...
– Ela não vai morrer!! Ela vai ser avó!
– Pra ela, dá no mesmo!
Nas semanas seguintes, Manuela fez questão de evitar a filha. Às vésperas da partida, aniversário da moça, enviou-lhe de presente um bonito macacão de gestante. Alícia achou que, enfim, a mãe estaria aceitando a realidade. Telefonou-lhe:
– Oi, mãe.
– Parabéns. – Manuela respondeu, secamente.
– Obrigada, mãezinha. Adorei o presente!
– Já que você vai mesmo ter esse filho, que pelo menos seja uma grávida bem vestida.
– E você vai ser uma linda vov...
Manuela desligou.
Na data da viagem, Alícia apareceu para despedir-se. Usava o presente da mãe que realçava ainda mais a barriguinha já saliente.
Encontrou uma eufórica Manuela, organizando as coisas no carro, dando ordens aos empregados e ao namorado. Muito maquiada, usava um vestido estampado em vistosas flores vermelhas, cujo corte realçava os seios grandes e a cintura fina. Com inacreditável competência, andava de um lado para outro, equilibrando-se elegante sobre saltos altíssimos.
Cumprimentou efusivamente filha e genro, despediu-se aos beijos e declarações de amor eterno, acompanhadas de mais beijos lançados ao vento, enquanto o carro se afastava. Porém, em nenhum momento olhou para a barriga da filha ou fez qualquer comentário ao seu estado e, assim que viraram a esquina, abandonou a máscara de placidez e desabou em choro convulsivo. Mateo entregou-lhe o lenço do bolso.
– Quer que eu pare?
Ela meneou a cabeça negativamente, sufocada pelos soluços. Prosseguiram assim por algum tempo, até que ela quedou-se silenciosa, a cabeça apoiada no vidro, fungando baixinho.
– “Regálame tu risa, enseñame a sonar” – começou a cantarolar Mateo.
Ela sorriu, ainda muito tristemente.
– “Con solo una caricia“ – ele prosseguiu, com sua voz grossa e totalmente desafinada.
Ela juntou-se a ele, na tentativa de fazê-lo entrar no tom:
– “Me pierdo en este mar
Regálame tu estrella,”
Como ele seguisse desafinado, ela começou a tentar regê-lo, as mãos para cima apontando as subidas da melodia, as mãos para baixo, suas descidas. E ria gostosamente da brincadeira.
– “La que ilumina esta noche
Llena de paz y de armonía,
Y te entregaré mi vida” *
Seguiram assim e ainda cantavam ao chegarem a Pamplona. Como planejado, o casal passou dois dias na cidade, em lua de mel. Também aproveitaram para tirar os passaportes do peregrino e carimbá-los. Na madrugada do terceiro dia, deixaram o carro em uma garagem, pegaram as mochilas e iniciaram a trilha. Era um agradável dia de abril, o sol entre nuvens tornava a caminhada bastante tranqüila. Manuela ia feliz e bem falante. Leu, na beira da estrada “Aqui o caminho dos ventos encontra o caminho das estrelas”. Achou poético. Sabia que Compostela era corrutela para “campo das estrelas”, mas só encontrariam os tais ventos no final da tarde, quando as brisas geladas da primavera recente vieram fustigá-los. Encolheu-se calada, para alívio de Mateo, mais interessado em contemplar o trajeto e meditar sobre o que o teria levado até ali: ela, claro! Mas, por quê? Era um amor temporão, embora estivesse longe de ser maduro e equilibrado. Manuela era fogosa e sexy, deslumbrante até ao acordar de manhã, mas era intensa demais em tudo: esfuziante quando feliz, sombria quando triste. Ao seu lado, às vezes sentia-se confuso, dominado. Noutras, protetor e paternal. Porém, uma coisa era certa: em todas elas, sentia-se vivo e apaixonado. Por ela, enfrentaria estrelas e ventos. Abraçou-a e assim, seguiram até o refúgio, em Eunate. Manuela ia pensando no neto ou neta. Desde aquela conversa com a filha, evitava pensar neste assunto, como se isso o fizesse menos real. Entretanto, foi impossível ignorar-lhe a barriga saliente. Sabia que, em breve, a criança chegaria e se veria obrigada a aceitá-la. Por ironia, na pousada, conheceram uma velha senhora, que estava conduzindo o netinho de volta à casa dos pais, numa aldeia próxima. Esses refúgios eram exclusivos para os peregrinos portadores do passaporte, mas desde que o filho se mudara, dona Raimunda fazia aquele trajeto e, com jeitinho, havendo vaga, sempre conseguia hospedar-se ali. Manuela, manteve-se à distância, observando a avó que cuidava zelosamente do pequeno. Depois de alimentá-lo e agasalhá-lo bem, ela sentou-se com ele e começou a lhe contar histórias. Cansados, logo os dois dormiram. Manuela deitou-se. Sussurrou:
– Mateo...
– Hum...
– Mateo! Está acordado?
– Agora estou! Diga!
– É uma velha, Mateo! Uma velha!
– Vai dormir, amor!
Os dias seguintes foram parecidos. Conheceram muita gente, fizeram boas amizades que prometeram perpetuar, viram monumentos, sentiram calor, sentiram frio, abraçaram-se, afastaram-se, conversaram e cantaram e também silenciaram, perdidos em seus próprios dilemas.
Enfim, ao cabo de quase um mês, chegaram a Santiago de Compostela. Era uma vitória para ambos, tanto pela aventura que lhes exaurira o físico, quanto pela oportunidade de apaziguarem os espíritos.
Alícia os esperava em casa. A barriga deixara de ser apenas uma promessa e tornara-se um gordo calombo sob o vestido folgado.
Manuela desceu do carro, feliz. Abraçou-a efusiva, apalpou-lhe a barriga, perguntou o sexo do bebê, chorou emocionada ao saber que seria uma menina. Abraçou o genro, entregou-lhes as lembrancinhas adquiridas na viagem.
Depois, pegando a filha pela mão, disse:
– Vem! Tenho uma novidade!
As duas seguiram pelo corredor e entraram no quarto.
Da sala, os dois ouviram o grito indignado de Alícia:
– Como assim “grávida”, mãe!?


* Solamente Tu – Pablo Alboran


*****

Texto escrito para o 7° Desafio Literário da Câmara dos Deputados
Categoria Contos - Etapa 3.
Clique aqui para ver o tema - provocação.
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 27/07/2011
Alterado em 27/07/2011


Comentários