Porta Aberta para Satanás
– Para o diabo os conselhos de vocês! – cantarolava Adelaide, acompanhando a letra, na tela do computador.
– Que música é essa, menina? – perguntou-lhe dona Amália.
– Legal, né, vó? Foi trilha daquele filme...
– Mas tem que falar no “coisa ruim”? – interrompeu a velha senhora, fazendo o sinal da cruz. – Fica chamando que ele vem, viu?
– Ih, vó! Que bobagem! O capeta tá muito ocupado aconselhando nossos políticos...
– Adelaide, Adelaide! Depois que ele atende, não tem volta, hein?
– Se ele ao menos for um sujeito divertido, será melhor companhia que você, com essas sua crendices.
Dona Amália meneou a cabeça, desanimada. Nos seus quase oitenta anos de vida já vira muita coisa, não falava por mera superstição. Mas a menina era mesmo desmiolada, fazer o quê? Pegou um terço na gaveta e começou a rezar.
Adelaide, para provocar à velha senhora, desfilou todas as músicas que conseguiu encontrar que falassem do demônio: Zé Ramalho, Raul Seixas, Caetano, Titãs, Belchior...
O transporte chegou para levar dona Amália à fisioterapia e Adelaide continuou sozinha em casa.
– Essa minha avó! – ela riu – Tá achando que o tinhoso é Bettle Juice...
– Ridículo! Bettle Juice nem existe... – disse uma voz andrógina, por trás dela.
Adelaide levantou-se de um pulo, ao virar-se e se deparar com ninguém menos que o próprio cramulhão, vermelho, com o corpo peludo e a cabeça careca, cheirando a enxofre, pernas de bode, rabo de lagarto, chifres espiralados e cara de mau.
– Além disso, eu não preciso ser chamado. Basta encontrar a porta aberta. – continuou ele.
Ela olhou instintivamente para a porta do apartamento, devidamente trancada desde a saída de dona Amália. A besta riu dessa atitude tão humana dela:
– Não essa porta, tolinha! – e apontando para seu peito... – esta daqui!
– Mas... mas... – ela balbuciou.
– Sim, eu sei! Nesta hora, todos acham que é injusto, que não abriram porta nenhuma, que merecem o... o... o outro lado, você sabe.
Sem nenhuma convicção ela balançou a cabeça afirmativamente.
– Você não é assim, não é, querida? Você conhece a maravilhosa oficina que montou para mim nesta sua cabecinha vazia, no breu do seu coração.
– Não! Eu...
– Oh! Não me decepcione... Você sabe muito bem do que estou falando... Três décadas de uma vida egoísta, inútil, sugando escandalosamente as economias e a saúde da velha.
– Eu?
– Sim! Usando as pessoas que te amaram... Incapaz de ceder, de oferecer afeto, de dedicar-se ao outro, de dedicar-se a nada... Sem estudo, sem emprego, sem família...
– Mas...
– Nem mais, nem meio mais, minha cara... Sua porta está escancarada para mim e em breve virei tomar o que é meu.
– Em breve?
– Sim! Por hora vim apenas buscar a velha.
– Vó Amália?
– Sim!
– Vovó?? Vovó é uma santa!
– É... Ela tem lá umas.... umas vir... umas.... virtu... Argh! odeio esta palavra! Ela tem lá umas qualidades! Mas, falhou esplendidamente na sua criação.
– Meus pais têm mais culpa! Me largaram aqui!
– Sim... O lugar deles está reservado. Quando eles chegarem, terei que despachar a sua preciosa avozinha para o outro lado. Mas, até lá, ela é minha e pagará pelos erros que você cometeu...
– Não é justo!
– Ah! Agora você vem advogar por ela... Há instantes se divertia em atazaná-la com suas musiquinhas pagãs...
– Era só uma brincadeira. Eu não... Oh! Eu devia ter acreditado nela!
– Não faria diferença, minha criança... Não importa se você crê ou não em mim, eu existo e estou sempre à espera das oportunidades que vocês mortais parecem sequiosos em me dar. O “pessoal do outro lado” até tenta mudar as coisas, mas meu caminho sempre foi mais fácil.
– E agora?
– Agora, você terá que se virar por aqui sem ela... Sei que você conseguirá e, o que é melhor, será da forma que mais nos aproximará.
– Meu D...
– Não diga esse nome, por favor! Arrasa com a minha enxaqueca!
– Eu...
– Eu! Eu! Eu! Só pensa no próprio umbigo, que maravilha! Descanse, querida. Agora preciso ir. E, lembre-se, minha casa estará à sua espera...
– Não...
– … de portas abertas. - completou ele, antes de sumir.
Quando vieram dizer à dona Amália que sua neta havia assassinado os pais, suicidando-se em seguida, ela apertou o terço contra o peito e limitou-se a murmurar:
– Eu avisei a ela... Ele atende...
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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Porta Aberta
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Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 16/05/2011
Alterado em 16/05/2011