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Os Sinos da Catedral


Eu os via sempre por aqui, um casal jovem, bonito. Sempre dava um jeito de me aproximar, para ouvir um pouco da conversa... É, eu sei... Não é bonito fazer fuxico. Mas acho que não posso ser criticado por isso... Você também teria curiosidade de entender o que tanto eles tinham para dizer um ao outro, entre beijos apaixonados e lágrimas sentidas.
Ah, sim! Eram beijos de tirar o fôlego até mesmo para mim, um sujeito já meio passado da idade de ter interesse por essas coisas. E as lágrimas? Como elas me comoviam! Remetiam-me a um passado remoto em que tantas vezes também em mim elas apareceram aos borbotões, transbordando toda a dor daquele meu amor em vão.
O amor deles não era assim. Ah, não! Isso era possível perceber, pela forma como ambos entregavam-se às delícias e angústias... Oh! Quanto prazer e dor existem num amor impossível...
Ah! Eu não disse? Desculpe-me por favor! Que cabeça a minha!
Era um amor impossível, embora eu não acredite na existência de impossibilidade no amor. Amor que é amor faz-se viável e eu sabia que o deles tinha essa força, esse poder. De certa forma, tinha a esperança de que eles percebessem isso.
Esperança, vã esperança... Nem mesmo todo o verde idealizado por Burle Marx para esse lindo parque cercado de dureza e concreto literal e metafórico do Setor Militar Urbano, poderia manter viva a esperança na realização desse amor. E assim, dia após dia, acompanhei o desenrolar dessa história, torcendo, silenciosamente como apraz a um velho enxerido que não tinha nada que ficar bisbilhotando as vidas e amores alheios.
Mas, oh! Pobre de mim... Eu mesmo um eterno romântico, condenado às agruras de uma natimorta paixão... Agruras que carregarei comigo por todo o tempo que me resta desta vida... Pouco, se Deus me for gentil.
Oh! Por que me envergonharia? Amei, sim! Amei loucamente, com toda a fúria de meu ingênuo coração e igualmente pensava-me amado, até ser confrontado com a realidade: não havia eco ao meu sentimento, não havia eco, não havia.
Aquela dor fez de mim um trapo, um lixo, um nada. Já, então, desejei a morte. Cheguei a procurá-la. Mas, assim como a ingrata que partiu meu coração, também a “definitiva” fugiu-me, deixando-me só, em agonia.
Enfim, recusado duas vezes, resolvi que só me restava viver. Viver em penosa solidão, arrastando as correntes da saudade, esmolando da existência o que dela a mim coubesse...
Ah! Sim, sim... Perdoe-me... Já começo a divagar... Perdoe esse velho. Chega uma certa idade em que se torna difícil encadear o pensamento... Voltemos aos dois, ao jovem casal. É claro que é deles que você gostaria de saber... Então é deles que falaremos.
Veja, você. Foi neste meu quase transe de aguardar dolente o fim dos meus dias, que os vi pela primeira vez. Um casal jovem, bonito... Ah! Eu já disse isso? Pois bem! Eram sim. Ambos muito jovens e bonitos. Eles chegaram juntos, abraçados. Ela chorava muito. Ele a consolava. Enfim, beijaram-se. Não quis envolver-me. Pela minha experiência, aquele era um adeus e de adeuses eu já estava pelas tampas. Fiquei por ali ciscando, observando as crianças que brincavam no laguinho, as senhoras que passeavam com cães barulhentos, os coquinhos que caiam das palmeiras de babaçu. Nem notei quando eles partiram.
Porém, não pude deixar de observar quando eles apareceram novamente, alguns dias mais tarde.
Não, não... Dessa vez, ela não chorava. Seria uma reconciliação, pensei, as pazes feitas, depois de uma briguinha tola. Cogitei aproximar-me. Eles conversavam animados, visivelmente faziam planos. Penitenciei-me de minha indiscrição indo ter com uns soldados que davam farelos aos pássaros. Fiquei lá com eles, descuidado do tempo e, novamente, não os vi indo embora.
Houve outros dias em que eles pareceram felizes. Trocavam carinhos, confidências, sorriam... Comecei a observá-los melhor. E percebi que havia neles um desconforto, um constrangimento... Preocupação. Era isso. Demorei a reconhecer, mas era tão óbvio: viviam sobressaltados, vigiando as cercanias, disfarçando olhares e gestos quando alguma pessoa aparecia. Foi então que resolvi aproximar-me... Discretamente, aos poucos... Nem precisava tanto zelo... Aparentemente, eu lhes era inofensivo e eles continuavam sua conversa como se eu não estivesse ali. E assim, tornei-me a silenciosa testemunha de dias felizes e outros, nem tanto.
Numa manhã, ela estava especialmente aflita:
– Você não entende? Tenho medo por você! Se ele descobrir...
Ele pareceu irritado:
– Eu sei, Emília... Já conversamos mil vezes sobre isso.
– Então, meu amor... Não podemos mais continuar assim!
– Pois não é o que eu vivo dizendo? Nós precisamos dar um fim nisso... Vamos fugir!
– Eu não posso! Não posso simplesmente romper com ele, dar-lhe as costas... E também não é justo exigir-lhe que deixe tudo para trás. Oh! Meu Deus!
– E o que é que você quer, então?
– Precisamos de um tempo... Parar de nos ver. É mais fácil enfrentá-lo sem precisar mentir.
– Eu não posso viver sem você...
– E você pensa que para mim é fácil?
Ele permaneceu calado. Amuado.
– Eugênio, por favor, entenda! Não podemos mais correr riscos desnecessários... Precisamos fazer as coisas direito!
Resolvi não ficar por ali... O final daquele impasse me parecia óbvio e triste. Não queria assistir.
Saí de fininho, dei uma voada por ali... Mas, afinal... Roía-me a curiosidade de saber quem seria o marido traído. Então, quase sem querer, voltei para perto deles, e pude ouvi-los combinar o encontro. Seria ali mesmo, naquela praça, dali a oito meses. Aparentemente, o tempo necessário para que ela resolvesse as coisas com o outro, solucionasse as pendências, e ele avaliasse se estava mesmo preparado para assumirem publicamente o seu relacionamento.
Depois, foram embora. Cada qual para um lado, cada qual com sua dor.
E eu fiquei ali, desapontado... Oito meses? Oito meses era muito tempo! Nem sei se viveria tanto!
Passei uns dias desmotivado. Não queria voltar à praça. Depois, repensei: se queria viver mais oito meses para conhecer o fim dessa história, não ia ser passando fome que eu conseguiria e o parque era o local mais pródigo em esmolas e migalhas.
Enfim, os oito meses se passaram e foi com ansiedade de amante que me preparei para o encontro. Parecia mesmo que eu é que ia, enfim, poder entregar-me a uma paixão devoradora, capaz de fazer-me abrir mão de uma vida inteira construída ao lado de alguém.
Sentei-me em meu cantinho de sempre.
Não tardou, ele chegou. Em seus olhos brilhavam esperança e incerteza, alegria e medo. Ele sentou-se num banco muito perto de onde eu estava e ficou esquadrinhando tudo à sua volta, como se achasse que ela poderia surgir de qualquer lugar, incluindo as águas sujas do laguinho.
Foram longos cinco minutos. Penso que duraram ainda mais do que os oito meses de intervalo até então. Um carro apareceu, mas não era o dela, um desses jipes meio desconjuntados, que nas mãos de uma bela jovem parecem tão cheios de charme. Ao contrário, foi um grande sedan preto que encostou no meio fio ao largo, deixando aflito o meu jovem amigo. Um homem já idoso desceu do carro e foi até o lado do passageiro, abrindo a porta para Emília desembarcar.
Acredite-me. Naquele momento, pude ouvir o coração do pobre rapaz batendo descompassado. Medo, muito medo! A presença daquele senhor ali era a prova de que algo dera errado. Como não? Pense comigo... Por que ela traria o marido? É claro que vinha dizer-lhe que pretendia honrar seus votos nupciais, que não trocaria sua vidinha perfeita ao lado dele por um relacionamento que não era mais do que uma tola aventura.
Pensei em afastar-me! Deus! Como poderia ter-me permitido tal sobrevida tão somente para reviver na história deles a minha? A angústia de esperar Paloma e ver Paloma desistir de nós... Vê-la com ele, fingindo-se feliz com ele, deixando-me ali, como quem abandona um naco de pão mofado...
Porém, ela sorria. Emília sorria. Não era o sorriso cheio de escárnio de Paloma. Era um sorriso de felicidade. A poucos metros de nós, ela deixou o marido para trás e correu ao encontro de Eugênio, lançando-se em seus braços:
– Eu sabia que você viria!
– Eu lhe disse! Não suportaria viver sem você. – ele respondeu, beijando-a delicadamente.
– E então?
– Por que você trouxe o velho?
– Foi a condição dele... Só aceitaria nosso amor se você tivesse resolvido tudo.
O jovem dirigiu-se até ele e o cumprimentou, com respeito.
– Senhor Alvarenga...
– Então, meu jovem... – perguntou o idoso, visivelmente desconfortável com aquela situação.
– Então, tudo certo. Consegui minha dispensa dos votos. Não serei mais um padre. Poderei, finalmente, casar-me com sua filha.
Padre!? Então era isso? E o “ele” a quem os dois se referiam não era o marido, mas o pai dela? Continuei acompanhando aquele estranho encontro feliz por mais alguns minutos, até que senti a pedrada. Olhei para a direção de onde ela veio e vi a mãe repreendendo a criança que me atingiu:
– Filho! Não se faz mal aos bichinhos assim!
Caí na grama, sem forças para mover a cabeça, pesada.
– Pobre pombinho! – disse a senhorita Alvarenga, enquanto iam embora...
Ah! Você não havia percebido ainda que eu sou um pombo... Desculpe... Achei que teria ficado claro quando disse que fiquei com os soldados que davam comida aos pássaros ou ainda, quando disse que voei por ali. Mas, tolice minha! Ninguém presta atenção em velho mesmo, é claro que você não notou.
Enfim, voltemos à nossa história, à minha agonia.
Fiquei ali uns minutos, o corpo gelado, o cheiro de sangue, espasmos... Em meio à dor, uma doce sensação de alívio: a morte enfim viria me buscar. E ela veio voando, muito branca, muito bela, muito... Muito... Não era possível!
– Paloma! – gritei, surpreso ao reconhecê-la.
Ela pousou ao meu lado. Sorria. Sem escárnio.
– Procurei você por toda parte...
– Por quê? Para quê?
– Porque sempre amei você.
– Estamos velhos agora, Paloma! Eu estou morrendo...
– Justamente por isso. Você precisa de mim...
Pensei um pouco. Algo não encaixava...
– Estou sonhando, não estou? – perguntei.
– Está.
– Vou morrer?
– Vai...
– Ufa! Finalmente!
– Mas, não hoje. – sorriu, irônica.
E levantou vôo novamente, sumindo no horizonte. Acordei. Estranhamente, não estava no gramado, mas no galho meio seco onde costumava ficar. O pescoço, intacto. Foi apenas um pesadelo. Devo ter cochilado. Coisa de velho... Sabe como é!
No banco logo abaixo, o pobre pai tentava consolar a filha, que chorava muito, enquanto na Catedral dobravam os sinos anunciando o fim da cerimônia de ordenação dos novos sacerdotes.

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Texto escrito para o 6° Desafio Literário da Câmara dos Deputados - Etapa 9.
Clique aqui para ver o tema - provocação.
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 02/02/2011


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