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Uma Nova Chance


- Meu Deus! – gritei, as mãos instintivamente protegendo o rosto, soltando o volante do carro sem controle, que se precipitava contra o enorme paredão de pedra.
Em seguida, o barulho, dor, muita dor pelo corpo todo, uma vertigem, como aquela que se sente quando, de estômago vazio, experimentamos a falta de chão em uma montanha russa. Senti o corpo rolar, dar uma cambalhota, talvez. Era difícil precisar a direção do movimento, mas estava certo de que fora lançado através do pára-brisa. Depois nada. Absolutamente nada. Silêncio. Escuro.
Morri... não foi um pensamento solto, uma divagação. Também não era a simples constatação de que ninguém jamais sobreviveria a uma batida daquelas. Era uma certeza. Um fato. Sentia-o em cada centímetro do corpo. Corpo? Tentei apalpar-se. Sim, estava lá. Havia um corpo. Era diferente, uma flácida consistência, mas era um corpo. Estranho... Acho que daqui a pouco vou acordar num hospital, cercado de médicos por todos os lados. Leonor e as meninas sentadas ao lado da cama, os rostos encrespados de medo e preocupação. Mas, havia a certeza da morte. Era mais palpável do que o próprio corpo que carregava comigo. Tentei respirar. Aspirei delicadamente, depois, com mais força. Senti um ligeiro mal estar, mas era como se não houvesse ar. Morto... E a luz? Lembrei-me dos depoimentos de pessoas que voltaram de pequenos estágios de quase morte, e que sempre falavam da grande luz, ao fim de um corredor escuro. Fiquei esperando alguns instantes, atento. Nada.
Resolvi levantar-se. A dinâmica de meu pseudocorpo era diferente, fazendo-me cambalear com um pequeno descontrole das pernas. Desengonçadamente, fui, aos poucos, conquistando seu domínio, até que consegui encetar alguns passos. Percebi que o ambiente em que estava era mais denso que o ar. Vencia aquele meio com dificuldade, como se estivesse dentro de um tanque de água. Também não havia chão, o que era be desconfortável. Cansei de esperar que alguma coisa acontecesse. Precisava seguir, sair dali. Aquele imenso vazio escuro me incomodava.
Seria um sonho? Lembrei-me de um episódio do Batman, assistido ainda na infância, em que ele afirmava ser impossível ler nos sonhos, porque a leitura se dá com um dos lados do cérebro, enquanto os sonhos são gerados pelo outro. Procurei, no bolso da calça, a carteira de cigarros. Peguei-a. Apesar de toda a escuridão, pude ler com clareza, as pequenas letras douradas no cantinho do pacote: “O Ministério da Saúde adverte: fumar faz mal à saúde”. Tive que rir. Saúde agora era uma preocupação meio sem sentido.
Sonhando, eu não estava. Resolvi voltar até o local do acidente. Precisava certificar-me do que acontecera. Só acreditaria na inexorabilidade da minha própria morte quando visse meu cadáver. Retomei o passo até que, de repente, senti-me bater em alguma coisa. Não uma batida seca, mas a sensação de que a densidade do ambiente mudou para maior. Esforcei-me para superar a resistência que tentava impedir-me de seguir em frente. Forcei passagem com o ombro, como empurrasse um armário grande e pesado. Foi quando ouvi os sons: vozes, sirenes, buzinas... Estaquei por um instante, ansioso, procurando identificar sua origem, tentando distinguir palavras, sem sucesso. Redobrei meus esforços, acelerando o passo, até que venci toda a resistência de uma vez e fui lançado para fora da encosta de pedra, caindo estupidamente de cara no chão. Sim! Agora havia chão. E cascalho, mato, algumas flores... Então era isso... O nada absoluto era apenas o interior da rocha. - pensei. Agora que a atravessara, estava no mundo que conhecia.
Os ruídos que ouvira antes, agora estavam bem mais fortes e decidi ir em sua direção. Percebi que saíra por um outro lado da pedra e comecei a rodeá-la até que as luzes de faróis e sirenes apareceram por entre as árvores e arbustos. Então, vi o carro. Ou o que restou dele, um enorme bolo de ferro retorcido, cercado por bombeiros, polícia e curiosos. Aproximei-me e deparei-me com o lençol cobrindo alguma coisa no chão que poderia ser o meu corpo, não fosse o estranho formato que em nada lembrava um ser humano. Abaixei-me até tocar a ponta do lençol, mas tomado de uma forte angústia e apreensão, desisti de levantá-lo. Sempre que ficava assim ansioso, eu costumava respirar profundamente algumas vezes, até que o corpo estivesse novamente sob meu controle. Mas tudo agora era diferente. Sem respiração e, pior, sem reação corpórea denunciando minha aflição. Então, só me restava tentar dominar as emoções, já que elas não mais se somatizavam. Levantei-me e dei uma volta no carro, tentando me convencer da importância desse pequeno ato. Aliás, tentava me convencer da pouca importância, uma vez que já estava convicto de haver desencarnado. Aos poucos, fui novamente me aproximando do corpo no chão. Finalmente, consegui tocá-lo. Primeiro, ainda sob o lençol. Depois, levantando o pano lentamente, pude reconhecer minhas roupas, os cabelos, o rosto. Completamente desfigurado pelo impacto, mas era a mesma cara feia que costumava ver diariamente no espelho. Sorri. Nem me achava feio. Mas costumava referir-me a mim mesmo desta forma quando vivo. Que dirá agora, transformado naquela maçaroca de carne, sangue e cacos de vidro sob o lençol?
Ri. Ri mais. E, em poucos instantes, gargalhava quase histericamente de toda essa estranha situação. Aos poucos o riso foi cedendo lugar à angústia, um pesar arrasador. Cenas de minha vida iam sucedendo-se na memória. E eram imagens chocantes de uma vida vazia, um exacerbado egoísmo, um total desrespeito pelo próximo, por suas vidas e sentimentos. As empresas que fizera questão de destruir numa concorrência desleal e sustentada pela corrupção, famílias inteiras desempregadas, nada me comovia, ofuscado pela ganância, por tolos propósitos da supremacia de meu império empresarial. Minha própria família, relegada a um plano secundário em minha vida, as filhas que mal cumprimentava, a esposa infinitas vezes traída, mantida sob rédeas curtas e mãos de ferro, somente para garantir o status de homem de família, enquanto, na noite, era conhecido pelos presentes caros, bebidas refinadas e a companhia constante das mais belas mulheres...
Em meio a essas lembranças vi abrir-se uma névoa negra a poucos metros de mim. Um forte cheiro de enxofre me envolveu, fazendo-me sufocar e, de onde estava conseguia ver, destacando-se naquela bruma, as chamas consumindo formas humanas que se debatiam em desespero. Uma força incontrolável enlaçou minha cintura, puxando-me para aquele inferno e, por mais que eu lutasse, marcando o piso com os pés cravados na terra, fui aproximando-me cada vez mais e já conseguia sentir o calor do fogo.
Desesperado, gritei, pedindo ajuda aos policiais que estavam a poucos metros de mim, mas nenhum deles parecia perceber o drama que se sucedia ali. Joguei-me no chão, de joelhos, e implorei:
- Senhor! Perdoe-me! Por favor, meu Deus! Me dá uma nova chance! Eu prometo que vou mudar! Eu vou...
- Rogério! Acorda! Você está tendo um pesadelo...
Um pesadelo? Acordei suado e tenso, olhei para Leonor como quem vê um anjo caído do céu, aliviado e agradecido.
Vê, Aline, meu bem, como não se pode confiar mesmo em ninguém? Aquela conversa de não se poder ler nos sonhos era pura balela! Quem diria? Até o Batman... Agora, apaga essa luz, minha vadiazinha favorita, e vamos aproveitar que o efeito do Viagra já está passando para eu dormir um pouco antes de voltar para a sonsa da Leonor... Amanhã vai ser um longo dia. Tenho umas empresinhas aí para esmagar.


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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Recomeço
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Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 31/01/2011
Alterado em 31/01/2011


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