Textos



Tourneé


Tinha poucas lembranças de meu pai. Não tinha cinco anos quando ele nos deixou, levando consigo a música e a alegria da casa. Minha mãe sempre falou pouco dele.
– Não quero passar para você o rancor que sinto. Ele é seu pai. – ela dizia, deixando transparecer todo o rancor que sentia e também todo o amor que tentava ocultar.
O diagnóstico de câncer veio para mostrar o quanto pode ser perigoso ocultar sentimentos... Numa manhã, fui retirada de sala de aula pela diretora da escola.
– Minha mãe morreu? – perguntei, angustiada.
Ela tentou sorrir, forçando uma simpatia que não era sua. Seu pesar tornava ainda mais assustador aquele sorriso triste. Sua resposta, porém, aliviou-me:
– Não, querida. Ela está bem. Mas, há uma pessoa querendo vê-la. Venha comigo.
Acompanhei-a até a secretaria, onde me deparei com um homem que me era familiar, embora sua imagem fizesse parte da minha vida somente por sonhos e lembranças difusas ou pelas revistas e TV. Ele era ainda mais bonito pessoalmente e muito mais do que permitia minha melancolia.
– Oi, filha.
– Pai... – balbuciei.
Ele me abraçou:
– Sua mãe me ligou. Você vai passar uns tempos comigo.
Era simplesmente inacreditável que ela o tivesse procurado para pedir isso. Olhei inquisitiva para a diretora.
– Sim, querida. Sua mãe nos ligou mais cedo... Como é seu último dia de aula...
– Nós vamos sair em tourneé! – ele anunciou, em forçosa empolgação.
Eu estava aturdida com tudo aquilo. Não queria estar com ele. Quem era ele? Um completo estranho, um fantasma do passado, um ídolo pop por quem as outras meninas enchiam álbuns de figurinhas e que eu nunca tive coragem de dizer que era meu pai. Nem mesmo por vaidade. Não tinha orgulho nisso. Ele havia magoado minha mãe.
– Cadê a mamãe? – perguntei.
– Vamos vê-la agora. Vamos passar em casa, pra você pegar suas coisas.
Saímos da escola sob suspiros femininos e eu tinha vontade de me esconder. Não entendia porque minha mãe não foi me buscar, poupando-me daquele desfile vexatório. Preocupava-me a idéia de que ela tivesse piorado e meus temores se confirmaram, em parte. Acometida pelos efeitos colaterais da sessão de quimioterapia, ela estava prostrada no escuro, nauseada e com dores. Eles ficaram conversando, enquanto eu fui arrumar minha mala.
– Mamãe? – chamei, baixinho.
Ela sorriu para mim.
– Meu anjo... – disse, acariciando meu rosto. – Divirta-se com seu pai. Ele é uma boa pessoa e vai cuidar de você.
– E quem vai cuidar de você?
– Sua tia Lúcia vem daqui a pouco.
– Eu não quero ir.
– Meu amor... É melhor para mim... Saber que você estará bem, longe dessa casa triste...
Ela tinha razão: era uma casa triste... Há uns oito anos, era uma casa triste. Mas eu não queria estar em outro lugar. Meu pai tocou meu ombro.
– Vamos, bebê? – perguntou, acordando a lembrança de quando éramos uma família. Era assim que ele me chamava, então.
– Não sou mais um bebê!
– Está bem, mocinha... – realçou esse “mocinha” com ironia. – Vamos? Ainda temos muito chão para rodar.
Beijei minha mãe e o segui, calada, cabisbaixa. No carro, detive-me alguns minutos examinando-o e foi quando percebi que também ele estava desconfortável com a situação.
– O que está olhando?
Assustei-me com o flagrante.
– Nada.
– Pode falar...
Não queria falar.
– Sua mãe estava mesmo abatida, não é?
– Hum hum. – uma lágrima fez-me olhar para fora.
– Ela era tão bonita...
– Ela ainda é!
– Deve ser... Não pude ver direito naquela escuridão.
– Por que você a deixou? Por que você nos deixou?
– Ela nunca contou?
– Não.
– É meio óbvio, querida. Eu era jovem, tolo, rico e famoso. Ter uma família só atrapalhava...
– E agora?
– Não sou mais jovem. – riu da própria piada.
– Por que voltou?
– Sua mãe pediu.
– Nunca teve vontade de me ver antes?
– Tive. E tive medo.
– De minha mãe?
– De você.
– De mim?
– Você me faria crescer.
Antes que eu pudesse entender, ele anunciou, mostrando o enorme ônibus da banda, parado em frente a uma bela casa:
– Veja! Chegamos!
Lá dentro, reinava um animado caos. Malas, fantasias, equipamentos de música espalhavam-se por todo lado na grande sala e, correndo atarefados entre eles, os componentes da banda.
– Essa casa é sua? – perguntei, admirada com a balbúrdia festiva.
– Não, Gi! Eu moro numa mochila. A casa é do Tony, nosso empresário. Quando estamos na cidade, ficamos por aqui. Vem! Vou te apresentar à família.
Foi me apresentando toda aquela gente, que me abraçava e beijava com exagerado carinho:
– Nossa! Está uma moça!
– Eu vi você bebezinha!
– Que linda que ficou!!
Foi quando nossos olhares se encontraram. Ele estava sentado a um canto, exatamente como eu teria escolhido, tentando parecer indiferente àquilo tudo. Não fomos apresentados. Ele devia ser um “penetra” assim como eu ou já era sabidamente reservado, o que o poupava de todo aquele frenesi.
Felizmente, as providências ainda a serem tomadas antes de pegarem a estrada forçavam todos a continuarem suas atividades e eu consegui recolher-me também a uma poltroninha mais afastada, de onde podia, com alguma discrição, examiná-lo melhor. Era um rapaz de uns quatorze anos. Lindo. Os cabelos castanhos longos e desleixados emolduravam o rosto bem feito, a pele lisinha, um bigodinho começando a aparecer. Algumas vezes, flagrei-o também me observando. Nas primeiras, ele tentou disfarçar, assim como eu. Depois, passou a encarar-me mais intensamente, desafiador. Até que se levantou e veio falar comigo.
– Oi. Sou Ricardo. Filho do Tony.
– Ah! Sou Giovana...
– Sim, sim... Filha do Cid. Tô sabendo. Vai na tourneé conosco?
– Você também vai?
– Vou! Tô de férias.
Ele sentou-se no chão, ao meu lado e ficamos conversando. Ricardo era bem diferente dos meninos da minha escola. Era divertido, interessante e não me tratava como se eu fosse uma garotinha assustada. Obviamente, o fato de ele ter acabado de me conhecer lhe dava alguma vantagem, já que ali, naquele ambiente tão oposto ao meu comum, cercada por pessoas desconhecidas e tão desinteressadas sobre minha presença, sentia-me confiante e estranhamente feliz.
No final da tarde toda aquela parafernália já estava devidamente acomodada dentro do ônibus, a polvorosa reinante foi cedendo lugar às despedidas. Fizemos um lanche e embarcamos, para aquela que seria a maior aventura da minha vida, embora eu ainda estivesse preocupada com a saúde de minha mãe.
Rodamos por várias cidades. Chegávamos sempre com alguns dias de antecedência e normalmente, saíamos logo depois dos shows. O assédio dos fãs, ao mesmo tempo que incomodava, cerceando nossos passos e atrapalhando passeios, também nos divertia. Até eu e Ricardo demos autógrafos! Foi engraçado...
Meu pai se mostrou um grande companheiro. Contou-me histórias que minha mãe sempre ocultara, a paixão que os uniu, o casamento precipitado e a minha chegada. Pela visão dele, tudo pareceu lindo e romântico ou engraçado, como sua partida, sob uma chuva de impropérios, louças e roupas. Ele ensinou-me coisas da vida e umas musiquinhas no violão. Por outro lado, sempre me deixava embaraçada pela forma como olhava para mim, quando eu estava com Ricardo.
Ricardo... Era tudo muito esquisito. Eu nunca havia me interessado por meninos. Achava-os todos uns chatos, sempre às voltas com videogames e briguinhas bobas. Ricardo era muito mais maduro, talvez por haver crescido no meio de músicos, um ambiente que respirava cultura. Era como eu, embora eu fosse mais soturna, observadora, enquanto ele era espirituoso, brincalhão.
Lembrei-me dos conselhos de minha mãe sobre como os homens podem ser dissimulados e maus. Ele não era assim. Pensando bem, nem meu pai era assim. Isto é, nesse período em que ficamos juntos, vi várias garotas se alternando em seu quarto, inclusive uma das vocalistas. Mas ninguém parecia cobrar nada, ele não as iludia com promessas de amor. De fato, a única mulher sobre a qual ele falava com algum encantamento, era minha mãe. Talvez ele a amasse realmente, mas fosse tolo demais para lidar com isso.
– Você está sangrando... – disse uma das moças, arrancando-me desses devaneios.
Olhei para ela, confusa.
– Como é?
– Você está sangrando, Gi. Está menstruada?
Corei. Olhei minha calça, onde uma feia mancha escura se espalhava. Felizmente estávamos no camarim feminino.
Uma delas adivinhou.
– É sua primeira vez?
– Sua mãe nunca lhe falou sobre isso? – uma outra perguntou.
Sim. Minha mãe havia conversado sobre isso comigo, vagamente.
– Quer que a gente fale com seu pai?
– Não! – quase gritei.
Elas riram. A mais velha delas tomou para si as rédeas da situação:
– Vá até o ônibus e pegue a mochila dela. – pediu a uma das outras.
Deu-me um absorvente, ensinou-me a usá-lo. Quando minha mala chegou, tomei um banho e troquei a roupa, lavando logo a outra por orientação dela.
– Para evitar que manche...
Saímos do camarim e eu tinha a impressão de que todos sabiam o que havia acontecido. Todas juraram não ter contado nada a ninguém, mas eu sentia-me envergonhada. Fui guardar minha bolsa no ônibus e por lá mesmo fiquei.
Algum tempo depois, Ricardo apareceu no corredor:
– Te procurei por toda parte.
– Não tô legal. – fingi uma careta de dor.
– Quer alguma coisa? Um lanche?
– Não... Acho que é só cansaço. Vou dormir um pouco.
– Posso ficar com você?
– Não quer ver o show? – quase implorei.
– Não... É sempre o mesmo. Chega para lá. – disse ele, já sentando-se ao meu lado. – Pronto... Vem cá. – abriu o braço, convidando-me a repousar a cabeça em seu ombro.
Era o que eu mais queria na vida. Mas, não naquela noite.
– Vem! – insistiu.
Capitulei. Recostei a cabeça e ele ficou acariciando meus cabelos, cantarolando baixinho uma velha canção de ninar. Virei-me para ele:
– Não sou mais um bebê...
– Eu sei. – ele disse. E, aproveitando a proximidade de nossos rostos, me beijou.
Foi mágico. Esqueci menstruação, mãe, pai, banda, escola... Só o que queria era sentir aquela boca na minha.
– Quer namorar comigo? – perguntou.
Sorri, completamente abobalhada. Fiz que sim, com a cabeça, não conseguia falar.
Ficamos ali, aos beijos e abraços até o fim do show. Meu pai veio ao nosso encontro:
– Você está bem?
Vi que ele olhava para Ricardo com desconfiança.
– Tudo bem, papai. Estava meio enjoada. O Ricardo ficou aqui, cuidando de mim – provoquei.
Mais tarde segredei-lhe. Estava decidida... Iria estudar música, entrar na banda, casar com o Ricardo e ter filhos lindos que criaríamos juntos, com amor. Em nossa casa sempre haveria música e alegria.
No dia seguinte, minha mãe ligou logo cedo:
– Sinto-me bem melhor, querida! Venha para casa... Vamos aproveitar juntas o restinho das suas férias.
Não houve argumentos que a convencessem. Tive ódio dela. Tive mais ódio do meu pai:
– Covarde! – disse a ele, tão logo desliguei o telefone.
Ele deu de ombros. Sabia que era verdade.
Naquela tarde mesmo, aos prantos, despedi-me de Ricardo e meu pai despachou-me num avião de volta para casa. Outros seis anos se passariam ainda antes que tornasse a ver o "grande" Cid Veloso.
Minha mãe estava à minha espera, no aeroporto. Fiquei surpresa ao vê-la tão bem. Estava corada, bonita, mesmo com aquele cabelo ralinho, só uma penungenzinha clara recobrindo a cabeça. E mais: namorando e feliz!
Quando soube do Ricardo, ela esforçou-se para ajudar-me a superar tudo aquilo, enchendo-me de carinhos e atenção, mas eu sabia que jamais esqueceria o meu primeiro amor.
Até que, alguns meses depois, conheci Daniel...

Texto escrito para o 6° Desafio Literário da Câmara dos Deputados - Etapa 7.
Clique aqui para ver o tema - provocação.
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 24/01/2011


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