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A REVOLUÇÃO

Já há alguns meses, algo estava estranho nas casas. Toda votação que implicava em perdas para a população ou em impunidade para algum corrupto terminava de forma muito diferente da esperada. Por mais que, nas negociatas e conchavos o resultado se mostrasse bem outro, por mais que o sigilo do voto fosse uma garantia aos que desrespeitavam os interesses da nação, por mais que as fidelidades partidárias fossem usadas para manter no cabresto os dissidentes, os votos, ao final do cômputo, eram sempre favoráveis aos anseios populares. Ninguém conseguia compreender porquê e, findas as apurações, o clima de discórdia entre os deputados e senadores era latente, acusações de traição reverberavam pelos corredores do Congresso.
Foi assim, por exemplo, no episódio da cassação do senador Lúcio Esteves. Ele distribuiu dinheiro a rodo, esperava-se sua absolvição, por quase 80% dos votos. Mas o que se mostrou foi exatamente o contrário: 52 a favor e apenas 18 contra sua punição.
Num ato desesperado, MCA e João Alberto Urtiga ordenaram a abertura do painel de votação do senado, para descobrir quem eram os mentirosos. Quando descobertos, argumentaram a intenção de usar a informação para levar às luzes da opinião pública os nomes dos que teriam votado contra. O resultado foi que os dois acabaram investigados pelo crime de violação do painel e tiveram que renunciar aos seus mandatos, para evitarem o mesmo destino do “nobre” colega, hoje cartola de um “timeco” de futebol em Brasília. Diante da imprevisibilidade das votações, a estratégia foi acertada, especialmente para o Urtiga que, chorando e pedindo perdão na TV, convencendo  assumindo o governo do Distrito Federal logo nas eleições seguintes. Pena que ele não aprendeu nada e continuou aprontando das suas até ser desmascarado, preso e cassado.
Outras votações polêmicas iam tendo o mesmo inesperado destino, mas a coisa tornou-se realmente séria com a aprovação da Lei da Ficha Limpa, por unanimidade pelo Senado. Foi quando se deu a certeza de que o processo não era nada confiável, pois cada um dos picaretas que seria prejudicado pela lei esperava ao menos um voto contrário a ela: o seu.
Discretamente, já que ninguém queria deixar chegar aos ouvidos do eleitorado sua suspeita – que, afinal, revelaria seu voto vergonhoso, os parlamentares iniciaram uma campanha à busca de culpados. O primeiro suspeito foi o sistema de informatização do painel e uma empresa de consultoria cobrou uma pequena fortuna para avaliar e reavaliar bancos de dados, aplicativos, servidores, rede; todo e qualquer componente que pudesse oferecer alguma vulnerabilidade ao registro dos votos. Nada foi encontrado.
Neste intervalo, outros eventos chamaram a atenção dos representantes das duas casas. Nos momentos mais comprometedores, portas ou janelas se abriam sozinhas, câmeras de vídeo começavam a filmar sem qualquer comando, conversas telefônicas e documentos chegavam aos holofotes da mídia e levavam à loucura e à cassação grandes nomes da política nacional.
Todos tinham medo de falar ou fazer qualquer coisa ilícita, já sabendo que não tardariam a ser desmascarados.
Fora os projetos de lei trocados. Propostas importantes como a criação de uma data comemorativa pelo aniversário da invenção da rapadura eram sumariamente substituídas por obscenidades com uma que pretendia obrigar qualquer ocupante de cargo político a matricular seus filhos em escolas públicas e impedir a contratação de planos de saúde ou tratamentos médicos em hospitais particulares. E, essas aberrações só eram reveladas, quando não havia mais como voltar atrás e tentar desmentir.
Numa tarde, um grupo de religiosos convidados a participar dos debates sobre a lei de liberdade de credo foi recebido no plenário da Câmara. Entre eles havia uma médium que logo sentiu as presenças no ambiente. Depois do encontro, pediu licença para ter com o presidente da casa e contou-lhe sua experiência:
Décio Longuinho não acreditou:
– Era só o que me faltava! Delma desabando nas pesquisas e assombração!
Despachou a velha senhora e chamou seus arapongas:
– Olha aqui! Essa maluca que acabou de sair daqui deve estar mancomunada com algum grupo de subversivos que quer desestabilizar a ordem política e democrática nacional. Quero uma investigação minuciosa nela e nas relações dela com qualquer um que frequente a casa.
Os homens iam saindo. Ele chamou um deles, pediu-lhe que esperasse. Quando os outros partiram, explicou-lhe:
– Orlando, preciso que você aja com muita cautela, pois sua missão será outra.
E explicou ao homem que ele deveria monitorar um projeto de lei, específico, criado por um seu aliado e que aumentaria a verba de gabinete dos deputados. Esse projeto era importantíssimo, pois seria moeda de troca para a aprovação de outras propostas polêmicas, de interesse do governo.
Orlando acompanhou o documento desde seu protocolo até o momento em que foi pautado para a sessão deliberativa. Não havia mais como alguém trocar os papéis. Pois quando a sua leitura teve início, em rede nacional pela TV Câmara, o texto havia sido substituído e sugeria a indenização, pelo Estado, para as famílias de todo cidadão que perdesse a vida por incompetência ou inoperância do Poder Público.
Décio ficou possesso. Xingou o outro de néscio para baixo. Ameaçou demiti-lo. Porém, diante das evidências de que ele havia cumprido sua tarefa corretamente, começou a cogitar se a velha médium não teria alguma razão. Só podia mesmo ser coisa do outro mundo! Ainda mais quando os outros investigadores levaram até ele o resultado de suas pesquisas. Dona Guiomar era uma médium muito competente e respeitada no âmbito de sua fé e fora dela.
Décio resolveu procurá-la. E, ante a insistência dele, a velha senhora comprometeu-se a tentar contato com os espíritos.
Os parlamentares aguardavam ansiosos o desenrolar do caso. Seus caixas dois e contas na Suíça não suportariam por muito mais tempo essa situação.
Na data e horário marcados, ela e um outro religioso chegaram ao prédio, carregando Bíblias e amuletos, fecharam-se numa sala onde diziam sentir mais fortemente as presenças e iniciaram as tentativas de contato, mas os fantasmas não pareceram muito interessados em conversar com eles. Somente no terceiro dia de tentativas, o médium entrou em transe e incorporou um dos seres que circulavam pelo ambiente.
– Quem é você? – perguntou-lhe dona Guiomar.
– Uma vítima...
– Vítima de que?
– Desses que aí estão e de todos os que vieram antes deles. Políticos inescrupulosos que nos matam nos hospitais sucateados, nas filas do INSS, nas avenidas inseguras, na miséria da fome, da seca, das enchentes, nas garras do tráfico. Esses que se dizem representantes do povo, mas ignoram nossos interesses em prol dos deles mesmos.
– E o que é que vocês desejam? – insistiu dona Guiomar.
– Um Brasil melhor, um país mais justo para todos.
– E como esperam conseguir isso?
– Interferindo.
– Vocês não preferem seguir sua jornada? Evoluir...
– Não podemos... Temos uma missão a cumprir aqui.
– E os outros poderes?
– Temos gente também por lá.
– E, o que esperar de um país comandado por almas perdidas?
Ele gargalhou, debochado:
– Almas perdidas? Nós? Convenhamos, vocês estão muito mais perdidos que nós...
Dona Guiomar rendeu-se à evidência. Eles estavam certos e o país seguia muito melhor com eles do que sem eles.
– E, por quanto tempo vocês ficarão aqui? – perguntou-lhe.
– Enquanto for preciso...
Em seguida, o homem teve um pequeno desmaio e, quando voltou a si, já não era mais o espírito.
– O que houve? – balbuciou, confuso.
Dona Guiomar contou-lhe o diálogo. Ele perguntou:
– E agora? Os legisladores esperam que consigamos ajudar essas almas a encontrarem seu caminho.
– Bem... – ela ponderou – Na verdade, eles esperam que elas os deixem em paz para poderem fazer o que bem entendem desse nosso país.
Saíram da sala e, ante os olhares aflitos dos deputados, anunciaram apenas:
– Não podemos fazer nada, é melhor se acostumarem a eles. Eles dizem que ficarão enquanto for necessário... e, sinceramente, penso que será por muuuuuuito tempo!

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Texto escrito para o 6° Desafio Literário da Câmara dos Deputados - Etapa 6.
Clique aqui para ver o tema - provocação.

Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 17/11/2010


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