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Não Agradeça

Convidada por uma amiga indiana para um jantar em sua casa, recebi uma série de recomendações sobre como me portar, de modo a não ofender seus pais. O casal, já idoso, migrou para o Brasil há anos, mas ainda mantém muitos dos velhos hábitos ancestrais. Assim, conforme palavras da própria Amisha, o evento seria uma pequena viagem à Índia.

Salivei à idéia de experimentar pratos típicos daquele país, famoso pelo tempero sutil e rico em ervas e especiarias. Em matéria de gastronomia, sou uma pessoa bem ousada e aberta a novas experiências. Adoro sushi e sashimi e já provei algumas coisas diferentes como carne de jacaré, rã, tanajura e tatuí. Creio que não me faria de rogada diante de um prato de escorpiões fritos, por exemplo.

Por outro lado, sou completamente avessa à mudança de hábitos, digamos, operacionais. Nada de xenofobia nisso. É questão de coordenação motora mesmo. Já me atrapalho com as coisas do dia a dia, aquelas que faço sempre e quase automaticamente, que dirá atividades complexas como comer peixe cru usando aqueles palitinhos? No restaurante japonês que frequento, os atendentes já me conhecem e sempre colocam na minha bandeja o “hashi turbinado”, aquele que tem um elástico na ponta. Para quê negar minha incompetência? Nem tricô, que tem a linha como guia no trato com as agulhas, eu aprendi a fazer direito!

Com esse histórico pessoal, não é de se admirar que as tradições indianas à mesa me assustassem um pouco. Deve ser esquisito comer com a mão, pegar grumos de arroz e lentilha com os dedos e levá-los à boca sem derrubar nada, sem lambuzar a cara toda de molho. Imaginava ser necessário amassar a comida para fazer dela um bolinho, mais manuseável. Para piorar, no sufoco, não se pode pedir “arrego” para a mão esquerda, considerada impura e que, por isso, não deve tocar os alimentos.

Curiosa, perguntei à Amisha porque, mesmo depois de tantos anos, seus pais não se renderam ao salutar hábito ocidental do uso dos talheres. A explicação dela foi um tanto poética e espiritualizada: garfo e faca eliminam o contato com o “divino da comida”. Não compreendi muito bem. Sempre usei talheres e ainda assim, acho a feijoada da tia Hilda simplesmente divina!

Trocadilhos infames à parte, essa questão das diferenças culturais é sempre um assunto interessante e perigoso. Na medida do possível deve ser tratado com respeito e consideração para não gerar incidentes diplomáticos ou acabar com belas amizades.

Assim, tomei nota dessa e de outras recomendações de Amisha, evitando criar qualquer tipo de constrangimento. Especial atenção para a necessidade de agradecer a Deus antes da refeição, mas nunca aos donos da casa, depois. Eles entendem que o agradecimento é uma forma de pagamento e seria muito grosseiro querer pagar por uma refeição para a qual fui convidada.

Uma vez que trazemos de berço a ânsia por demonstrar nossa gratidão, essa última recomendação de minha amiga exigiria um extra no meu coeficiente de atenção. Por mais jeca que seja, ainda nos sentimos compelidos a dizer o “obrigado por tudo e desculpa qualquer coisa” ao término de uma estada em que fomos bem recebidos. Porém, se é isso que fará meus anfitriões felizes, vá lá! Não agradeço.

Por analogia, deve ser deselegante agradecer por qualquer coisa para a qual um pagamento seja inadequado. Presentes, doações, favores e... Sexo! Aquele manhosinho e nem sempre tão sincero: “Humm! Obrigada, amor! Ninguém nunca me fez sentir assim antes!” seria o mesmo que chamar o parceiro de profissional. Se bem que, para alguns homens, a pecha de profissional do sexo pode soar até elogiosa. Especialmente àqueles que têm um desempenho amador.

Pensando bem, é tudo uma questão de conceito. Só sei que, nessa confusão entre agradecimento e pagamento, da próxima vez que meu chefe vier me agradecer pelo trabalho bem feito, não pensarei duas vezes antes de responder: “De nada, chefinho! Mas, prefiro a minha parte em dinheiro!”.

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Texto escrito para o 6° Desafio Literário da Câmara dos Deputados - Etapa 5.
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Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 03/11/2010


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