Esquecendo um Grande AmorA despeito de toda a aparente normalidade, Luana sabia que aquele não era um dia comum e era possível ler em seu olhar o quanto ele estava torturado e infeliz, o quanto precisava falar.
Ela já sabia o que ele diria. Havia descoberto a existência da outra há alguns meses. Ao atender uma ligação, uma voz feminina disse, sem rodeios:
- Meu nome é Odete. Sou amante do Alaor. Estou ligando para avisar que ele vai deixar você para ficar comigo.
Na hora, surpreendeu-se com a sua postura:
- Obrigada pelo aviso. - respondeu, como quem agradece o atendimento da mocinha do SAC.
Depois, prosseguiu:
- Espero que você entenda, porém, que eu não tomarei qualquer atitude, baseada em sua ligação.
- Como assim? - a outra quis saber.
- Você entende... pode ser uma brincadeira de mau gosto ou, ainda pior, apenas o desespero de uma mulher cansada da passividade daquele que julga ser o seu homem.
Odete tentou interrompê-la algumas vezes, mas ela prosseguiu, em voz firme e pausada:
- Mas não se preocupe. Se você está tão certa de que esta será a decisão dele, é só aguardar. Não serei empecilho para a felicidade de vocês.
A outra exasperou-se:
- Você tem sangue de barata!? Jamais eu ficaria com um homem que estivesse me traindo desse jeito!
- Você já está... - ela respondeu - Ou pensa que, em nossa cama, à noite, ele era fiel a você!?
A amante quedou-se pasma por alguns segundos. Luana aproveitou a oportunidade e não lhe deu a chance de dizer mais nada:
- Obrigada novamente pelo alerta, mas peço que não me telefone mais. Seu assunto é com ele, não comigo. Tenha um bom dia.
- Espera! Espera! - ela ainda gritava quando Luana desligou o telefone.
Passado esse primeiro momento de aparente tranquilidade, ela chorou, chorou até quase sufocar, pensou que morreria. Naquele dia, morreu mesmo, um pouco. Ele era o único homem que ela amara em sua vida, haviam se conhecido ainda muito jovens e, desde então, estavam juntos. Saber-se traída assim, doeu. Mas doía muito mais a perspectiva de perdê-lo, de seguir sua vida sem ele, carregando apenas o fantasma da figura dele em cada fragmento de suas lembranças.
No entanto, ela conseguiu cumprir suas palavras. Não tocou no assunto com ele, nem com ninguém de seu círculo de amizades ou família. Refugiou-se na rotina do trabalho, do trato com a empregada e os filhos... Porém, sabia que, a qualquer momento, a pressão daquela mulherzinha por uma atitude dele iria culminar com a conversa que teriam em breve.
E foi justamente naquele dia tão normal que ela sentiu que aconteceria. Assim que as crianças dormiram, ele a chamou para conversarem. O conteúdo desse diálogo é um tanto óbvio, penso não ser necessário detalhá-lo.
Da mesma forma que agiu com a outra, Luana disse a ele que estava livre para seguir sua vida. Pediu-lhe apenas que aguardasse umas duas semanas, tempo em que precisava que ele cuidasse da casa e dos filhos, enquanto ela faria uma viagem. Aliviado por não ter que lidar com choro e lamentos, ele concordou imediatamente.
Na manhã seguinte, ela despediu-se deles como se ainda fossem sua família e saiu de casa, com uma pequena mala. Para as crianças, disse que viajaria a serviço.
Do carro, ligou para o chefe. Ele já estava de sobreaviso, havia lhe dito que precisaria submeter-se a uma pequena cirurgia em breve. Ele concordou em antecipar-lhe as férias e apenas pediu-lhe que concluísse a análise de um relatório que já vinha fazendo. Ela aceitou a condição.
Estacionou em frente à clínica. Doutor Silvamar já a esperava. Insistiu que ainda era um tratamento experimental, poderia ter efeitos colaterais inesperados, mas ela estava decidida.
Então, ele injetou-lhe alguma coisa no braço e pediu-lhe que ficasse relaxada. Teve início a seção de hipnose, onde ele orientou-a a buscar na memória todas as lembranças de Alaor que gostaria de apagar. A técnica consistia em sinalizar ao médico as lembranças que gostaria de apagar para que ele desse os comandos necessários, eliminando-as de sua mente. Deixaria apenas a fria compreensão de sua existência, pois havia a questão prática a tratar: os papéis da separação, a guarda das crianças, a divisão do patrimônio...
Lembrou-se do dia em que se conheceram, na faculdade. Deu o sinal ao doutor Silvamar. Fez o mesmo com as primeiras trocas de olhares, as zombarias dos colegas, o primeiro beijo, em frente à sala dos professores.
Prosseguiu apagando a busca por emprego, a vida começando, o apartamento financiado em mil prestações...
Quando o médico a tirou do transe, avisando que continuariam no dia seguinte, ela estava exausta. Já no quarto do hotel, fez uma refeição frugal, abriu o computador e começou a analisar o relatório, como havia prometido ao chefe. Pretendia enviar-lhe a resposta ainda naquela tarde mesmo. Porém, não conseguiu evoluir muito. Tinha a sensação de não estar entendendo nada. Pensou que fosse o cansaço. Desistiu e dormiu.
No dia seguinte, logo cedo, voltou à clínica e o processo se repetiu. Buscou novas lembranças de Alaor para apagar. Naquela tarde, do mesmo modo, não foi capaz de compreender o tal relatório. Sequer alguns conceitos básicos. De repente, percebia que havia apagado da memória tudo o que estivesse relacionado com a faculdade, inclusive o conhecimento adquirido, professores e colegas. Lembrou-se da advertência do médico sobre os efeitos colaterais e contou a ele o que estava acontecendo. Interromperam imediatamente as sessões e ela ficou internada, em observação.
Estranhamente, mesmo não estando mais em transe, lembrava cada vez menos das coisas acessórias a qualquer passagem de Alaor que lhe viesse à memória. Percebeu isso quando quis cantar a música deles, um velho sucesso da MPB. Simplesmente, não conseguia lembrar-se da letra, do nome dela ou do cantor. Não podia mais lembrar-se dos seus pratos favoritos, os restaurantes que frequentavam, os programas de TV que assistiam...
O médico tentava desesperadamente ajudá-la, revertendo o processo à base de medicamentos, a maioria deles usada no tratamento do Alzheimer, mas nada surtia efeito. Entrou em pânico quando não conseguiu mais lembrar-se do sorriso dos filhos. Logo, mal se lembrava de tê-los, esqueceu a família, os amigos... Aos poucos, até seu próprio nome desapareceu.
“Quem sou eu?” Queria perguntar, mas as palavras também fugiram. Tornou-se incapaz de formar uma frase simples. Somente uma palavra, uma lembrança, uma pessoa, uma única memória dominava todo seu pensamento: Alaor.
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Este texto foi escrito para um concurso. O título era "Esquecendo Alaor".
Ele ficou os cinco melhores textos inscritos, mas, ao ser colocado para votação pela Internet, observei falhas no sistema que permitiriam fraude. Alertei a organização sem sucesso. Deste modo, solicitei sua retirada do concurso e do site.