Um Dia- Melhor chamar o marido... - dr. César pediu à enfermeira da UTI.
- Mas, doutor, são quatro da manhã. Está fora do horário de visitas... – argumentou ela.
- Eu sei. Mas eu duvido que ela passe de hoje. Você não gostaria de ver o seu amor de toda uma vida por mais uns instantes antes de partir? – disse ele, visivelmente emocionado.
Ela assentiu e foi providenciar a autorização para a entrada do quase viúvo.
Aquele diálogo trouxe de volta a paciente do torpor em que se encontrava, justamente a tempo de ouvir a resposta do médico.
Ela permaneceu de olhos fechados por uns instantes, pensando. Um dia de vida. Somente mais um dia, talvez menos.
Sentou-se na cama, para desespero das enfermeiras que correram para impedi-la. Ela, com a voz muito calma, pediu:
- Vocês ouviram o que o médico disse. Hoje pode ser meu último dia de vida. Não é aqui que quero passá-lo.
As moças não tiveram como impedi-la. Ajudaram-na a livrar-se dos aparelhos e descer da maca. Ela encontrou o marido já na saída da UTI. Disse-lhe apenas:
- Me leva daqui!
Enquanto ela se trocava, ele livrou-se dos entraves burocráticos. Depois, jogou-lhe um agasalho sobre as costas e a amparou até o carro. Já sentada, ela contou a ele as palavras do médico. Choraram abraçados, até que ela pediu:
- Se é o último, que seja inesquecível. Vamos para casa?
- Claro, meu amor. - balbuciou ele.
Chegaram quando o dia já ia clareando. Ela tomou um banho, vestiu uma roupa bonita e voltou para a cozinha, onde o encontrou, já com a mesa posta para um lauto café. Comeram com prazer, conversando como há muito não faziam, envolvidos em suas próprias rotinas.
- Gostaria de ir ao Jardim Botânico. Sempre amei a natureza, mas não tinha mais tempo para ver as plantas, os bichos... – ela disse.
E assim, fizeram. Enquanto ela se encantava com pássaros e borboletas, flores e folhagens, teias de aranha em mosaicos de prata sob o sol, ele ligava para os filhos, do celular, convidando-os para o almoço:
- Sim, meu filho, sei o quanto esta sua reunião é importante. Mas pode ser que você nunca mais veja a sua mãe... Não quer se despedir? – ela o ouviu dizer. Sorriu, quando ele ordenou – e tire a tarde de folga!
Foi mais ou menos igual com os outros três. Todos muito ocupados em seus afazeres, sem tempo para afetos.
Encontraram-se em casa. Ela não pode conter as lágrimas ao ver todos reunidos: os filhos, as noras e genros, os netos... Até seu irmão com a esposa e os sobrinhos a aguardavam.
Embora a ocasião não fosse festiva, ela transparecia tanta paz, tanta felicidade na companhia deles que todos se divertiram e riram muito. Depois do almoço, sentaram-se na sala para ver fotos, partilhar memórias, assistir os vídeos da família. Quando partiram, já no final da tarde, o marido a convidou para saírem.
Ela estava visivelmente abatida, mas aceitou.
Foram ao cinema, depois jantariam no restaurante favorito dela. E, caso ela ainda estivesse se sentindo bem, iriam à boate onde se conheceram há mais de quarenta anos e que ainda conservava o mesmo estilo romântico da época, conforme ele conferiu na internet, já que há décadas não iam lá.
Durante o filme, ela aconchegou-se nele e recostou a cabeça em seu ombro. Ficaram de mãos dadas. Quando os créditos começaram a ser apresentados, ele fez menção de levantar-se, mas ela não se moveu. Ele percebeu que havia chegado a hora. Enfim, depois de anos de convivência, ela partia de sua vida, da mesma forma que havia entrado: suavemente.
Soltou a sua mão para poder tomar as providências. Foi quando ela despertou e sorriu, envergonhada:
- Hum! Acho que cochilei – sorriu. – o filme foi bom?
Ele a abraçou, feliz:
- Não perdeu nada, querida!
Terminaram a noite como haviam planejado. Ao chegarem em casa, envoltos pela ternura do momento, fizeram amor. Despediram-se com um boa noite quase costumeiro, embora carregasse em si tanto adeus.
Cinco anos se passaram desse dia. Quando alguém lhe pergunta quantos mais pretende viver ela responde, sábia:
- Só mais um dia.*****
Este texto faz parte do Exercício Criativo Um Dia
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