Textos



Com a Primavera Entre os Dentes


"Quem tem consciência para ter coragem
Quem tem a força de saber que existe
E no centro da própria engrenagem
Inventa a contra-mola que resiste
Quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade decepado
Entre os dentes segura a primavera"

(João Ricardo/João Apolinário)

Emengarda era uma pessoa amorosa, solícita, gentil. Mas, era fria e indiferente aos arroubos das paixões. Seus amores sempre foram reservados, casara-se por amor, no amor criara os filhos. Porém, erguera à sua volta uma redoma de sobriedade que a protegia do sofrimento, embora também a afastasse das alegrias extremas. Era feliz. Sabia-se feliz, racionalmente feliz. E isto lhe bastava.
Seu marido, ao contrário, sentia falta de um pouco mais de emoção. Aos dez anos de casados, fugiu com o circo. Mais exatamente com uma das bailarinas de um circo mambembe que atravessou a cidade.
Emengarda ficou sozinha com os dois meninos para criar. Trabalhou firme, lamentou-se pouco e nunca deixou faltar nada às crianças, que educava com esmero e atenção. Quando o mais novo também foi para a faculdade na capital, viu-se sozinha. Aproveitou a paz da casa vazia para cuidar de seus afazeres comezinhos. Seu jardim era um dos mais bonitos da cidadezinha, talvez justamente pelo desprendimento com que ela arrancava floradas inteiras, substituíndo-as a cada estação por outras espécies mais adequadas. As vizinhas chegavam às lágrimas ao vê-la converter em terra fofa os canteiros que há poucas horas resplandeciam em cores e cheiros exuberantes. Das flores arrancadas formava buquês que vendia na feira municipal. Foi quando conheceu Apolinário. Fornecedor de produtos agrícolas, o belo mulato tinha um sorriso lindo de iluminar o dia de qualquer uma, um humor de fazer rir às santas e às outras e uns olhos penetrantes que pareciam ler as entrelinhas da alma. Emengarda deixou-se ler. Apolinário gostou do que leu, encantou-se pelo desafio que seria transformar aquela mulher em MULHER.
E ele conseguiu. Em pouco tempo, Emengarda suspirava de amores pelo mulato. Ele a divertia, a encantava com seus arroubos quase juvenis, uma energia sem fim, o jeito, o cheiro... Ele a possuia como se ela fosse a melhor amante do mundo e depois, deitados, nus, lhe falava coisas doces, elogiava seu corpo e dizia o quanto estava feliz ao seu lado. Então, sumia. Às vezes, ela o via com outras. Ele dizia que eram clientes, que seus sumiços eram exigência do serviço, pois viajava sempre à capital. E ela confusa e insegura, sofria. Sofria como jamais havia sofrido na vida. Aflita, esperava os telefonemas que não vinham, os encontros que não haviam. Amargurada, mandava-o embora. Ele ia, mas voltava com flores, carinhos, promessas... humilhava-se, pedia perdão, pedia para voltar. E ela cedia, sempre.
Um dia, depois de uma discussão, em que mais uma vez ele a convenceu de que tudo não passava de invencionices de sua cabecinha pouco confiante, ela pediu-lhe desculpas por ser assim, tão inconstante.
- Não desculpo. - ele respondeu, deixando-a surpresa.
- Como assim? - perguntou ela, um meio sorriso nos lábios, pensando que fosse mais uma de suas brincadeiras.
- Não cabe a mim, desculpar. Cabe a você se controlar.
Aquilo doeu fundo. Em todo sua vida, Emengarda fora "controlada". Em toda sua vida, fora uma mulher fria, uma mulher segura de si e de seus sentimentos. Ele a havia transformado no que ela era, agora. E, apesar da tortura que era essa montanha russa sentimental, ela gostava mais de ser assim, pois vivia tudo muito mais intensamente. Apaixonada! Ela estava apaixonada!! Ardia em febres de desejo e ao mesmo sofria de medo. Sabia que era um beco sem saída, mas era ali que o paraíso se escondia. Não! Tudo o que ela não queria era controlar-se.
Afastou-se dele com delicadeza. Caminhou até a janela. A lua cheia iluminava tudo à sua volta, as flores em seu jardim, os casebres do bairro, a torre da igreja que se projetava para o céu, por cima dos telhados. Tudo tinha um brilho diferente para ela agora. Sentia-se viva, como nunca sentira. Ele aproximou-se dela, abraçou-a por trás. Sussurrou:
- Temos um trato?
O contato do corpo dele fez o dela latejar. O coração saltou à boca com o aveludado daquela voz. Era isso o que queria! Era sentir isso, viver isso, respirar isso. Sabia que nunca fora tão feliz. Ao mesmo tempo sabia que algo dentro de si havia se quebrado. Tomou fôlego e pediu-lhe que fosse embora. Ele não acreditou, sabia que mais cedo ou mais tarde, ela o aceitaria de volta, ironizou sua decisão. Mas ela foi enfática e ele partiu.
No dia seguinte, quando Apolinário voltou para procurá-la, encontrou-a agitada, coordenando os homens do caminhão de mudanças. No portão, uma grande placa de "vende-se".
Ela lhe abriu seu melhor sorriso. Entregou-lhe um lindo buquê com as flores de seu jardim. Junto, um bilhete, em letra caprichada:

Amo você, intensamente, amo
Por seu amor, fiquei enlouquecida
E o amor que hoje em mim carrego
É o amor maior que já senti na vida

Agradeço muito ter lhe conhecido
Me transformado em quem eu sou agora
Ardendo em febre, fogo, apaixonada
E é por isso que estou indo embora

Tudo o que sou devo ao seu amor
Eu me tornei uma mulher mais bela
Eu sentirei demais, a sua falta
Mas, sentiria mais a falta dela.

Nunca mais a encontrou. Dizem que ela virou poeta, que ganhou o mundo, que conquistou fortuna e casou com um rei.
Enquanto numa outra pequena cidade cuida de seu novo jardim e procura um novo amor Emengarda ri dessas histórias descabidas.
Sabe que ganhou de fato o que de mais importante existe: paixão pela vida.

Imagem daqui.
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 22/09/2009
Alterado em 30/07/2010


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