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Grandes Amores Também Podem Morrer


Ele entrou no quarto. Como das últimas vezes, não me dirigiu a palavra. Sequer olhou para mim, nem mesmo quando fechei o livro que lia para acompanhar seus movimentos. Carregava umas caixas grandes. Fiquei curiosa do por quê, mas o cenho franzido me desanimava a encetar qualquer tentativa de diálogo. Fiquei apenas observando.
Ele parou em frente ao guarda-roupa e começou a recolher meus vestidos. Vários de uma vez. Dobrou-os ao meio e os colocou numa das caixas. Incrédula, murmurei:
- Então é assim? Dezessete anos de casamento e você simplesmente vai me pôr para fora da sua vida? Da nossa casa?
Ele me ignorou novamente. Continuou pegando minhas roupas e colocando-as nas caixas. No início até com algum cuidado, depois, com raiva, abraçou um monte de camisetas e jogou-as de uma vez. Dos terninhos, fez sanfona. Pensei em pará-lo. Tomar tudo da mão dele, recolocar minhas coisas de volta ao seu lugar. Onde já se viu? Quer acabar com tudo, que leve suas tralhas e vá embora de vez! Levantei-me, desta vez, furiosa. Ia empurrá-lo para longe das minhas gavetas, quando vi que ele estava chorando. Grossas lágrimas molhavam o rosto de feições amarguradas, a barba por fazer. Observei seu desespero, enquanto ele, apoiado na gaveta das meias, apertava entre os dedos minha velha meia colorida das aulas de dança. Era velha. Mais velha que nosso casamento. Longa, de lã, espalhafatosa com suas muitas listras rosa, amarelas, vermelhas, azuis, verdes... Mas, eu a adorava e a calçava sempre que sentia frio nos pés. Nas primeiras vezes que me viu com elas ele zombou de mim. Depois, acostumando-se com elas, acabava por excitar-se. Sempre que eu as calçava, fazíamos amor. Já havia virado um fetiche, uma de nossas muitas brincadeiras de casal e não foram poucas as vezes que o esperei, na cama, vestida apenas com elas.
Recuei, comovida, ao vê-lo chorar daquele jeito. Resolvi abraçá-lo. Dizer-lhe que ainda podíamos superar tudo, reconstruir nossa vida em comum. Não consigo me lembrar de onde erramos, quando nosso amor transformou-se nessa... "coisa", mas ainda poderíamos ser felizes, por que não? Ao tocá-lo, porém, percebi que minhas mãos o atravessavam. Como se ele fosse um fantasma. Ele não esboçou qualquer reação ao meu contato e jogou minha meia na caixa caída aos meus pés. Abaixei-me para pegá-la. Minhas mãos a atravessaram também. Tentei de novo e de novo minhas mãos agarraram o vazio. Olhei para mim, minhas mãos, minhas pernas... etéreas, quase transparentes. Entendi. O fantasma era eu. A lembrança do acidente veio forte em minha mente. O caminhão lançando-se desgovernado sobre mim, a batida, a dor, gritos. Depois silêncio... O mais absoluto silêncio. Agora tudo fazia sentido. Olhei-o ternamente enquanto ele terminava de esvaziar a gaveta na caixa. Despedi-me sem palavras, sabia que seriam inúteis.
Virei as costas e parti.

Imagem daqui.
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 29/04/2009
Alterado em 18/09/2010


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