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A Chuva por Testemunha
Ela acordou com os cachorros latindo no fundo do terreno, por onde passava um córrego. Tentou fazê-los calar. Ainda não eram sete horas da manhã, não gostava de incomodar os vizinhos. Não tendo sucesso, vestiu-se e caminhou na direção do alvo de toda aquela atenção. Mesmo com a neblina conseguiu divisar o volume, o vestido florido balançando na água. Uma mulher! Não podia acreditar. Ela estava se afogando, a cabeça dentro d’água. Saltou e nadou até ela, mas percebeu que não adiantaria mais. Estava morta.
Correu até em casa, chamou o marido e ligaram para a polícia.
As investigações concluíram que o corpo veio arrastado pelas águas desde a margem ao lado da pontezinha, onde havia marcas de luta e sangue. Ela chamava-se Abgail, era moradora de uma favela próxima e estava se separando do marido violento. No domingo, apesar da tempestade que desabava, havia saído após o almoço para ir à casa de familiares, mas nunca chegou.
Os peritos afirmaram que a morte foi causada por várias facadas e que teria ocorrido no intervalo entre as quinze e as dezessete horas, já descontando o resfriamento do corpo pela noite passada nas águas do córrego. Não havia sinais de violência sexual, mas a bolsa não foi encontrada. Porfírio, o marido foi logo considerado suspeito. Ele, porém, tinha um álibi. Vários vizinhos o haviam visto chegar em casa com as crianças ainda no início da tarde e só sair já de noitinha, para lamentar mais uma derrota de seu time. Apresentava sinais de embriaguez, mas parecia tranqüilo e afirmava estar esperando o retorno da mulher para entregar-lhe os filhos e sair com os amigos. Quando soube de sua morte, desesperou-se. Entre lágrimas e soluços sentidos, disse que estavam tentando reconciliar-se.
As investigações esfriaram um pouco, agora sem a existência de suspeitos. Começaram a apoiar-se na tese do latrocínio e a buscar nos arquivos da polícia por criminosos com modus operandi semelhante. Observaram que três deles estavam soltos, um morava  próximo o bastante para ser considerado nas investigações. Quando foram a sua procura, novo balde de água fria: ele havia morrido há alguns meses, vítima de uma briga de bar.
Os investigadores, resolveram voltar ao local do crime, na esperança de encontrar alguma outra pista, algum detalhe que pudesse ter passado desapercebido. O que não esperavam, porém é que ela, a mesma tempestade que havia assistido à morte da pobre mulher, desabaria novamente, furiosa, sobre eles, tão logo chegassem ao local do crime. Lamentaram a falta de sorte: a chuva acabaria por eliminar qualquer vestígio deixado no local, sua vinda até ali teria sido em vão e provavelmente, jamais descobririam o assassino de Abgail.
Já encaminhando-se para os carros, surpreenderam-se ao perceber que a mesma chuva que os estava deixando sem saídas, trouxe à tona uma sacola que estava enterrada na terra fofa próxima ao córrego. Dentro dela, a bolsa de Abgail e roupas de Porfírio cobertas do sangue dela, a arma do crime e muitas impressões digitais. Acuado, ele confessou que já havia saído de casa com a intenção de matá-la. Enquanto ela estava distraída se arrumando, ele dopou as crianças. Assim que ela saiu, pegou a faca e foi atrás dela. Aproveitando-se da chuva que manteria todos em casa, esgueirou-se por entre os barracos e ainda conseguiu encontrá-la na parada de ônibus. Mostrando-lhe a faca, disse que mataria as crianças se ela não voltasse com ele e ela, apavorada o seguiu. Depois do crime, ele ainda conseguiu retornar ao barraco, sem ser visto. Nenhum sinal de arrependimento. Quando lhe perguntaram o porquê, respondeu, dando de ombros, que estava cansado dela, sempre querendo ir embora, sempre reclamando de tudo.
Os investigadores ficaram chocados com aquele coração gelado como as gotas da chuva que ainda caía, cinzento como as nuvens que ainda escureciam os céus...

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Este texto, assim como o que publiquei ontem, foi escrito para o III Desafio Recantista (veja detalhes em:
http://www.escritoresdorecanto.xpg.com.br/desafio200903.htm).
Ao final, optei pelo texto inscrito, por entendê-lo uma proposta mais leve e divertida:
http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/1544192
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 23/04/2009
Alterado em 23/04/2009


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