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Medo (ficção - amor)
Aos cinqüenta e dois anos, Lisa de repente viu-se sozinha, viúva, após um casamento muito feliz de quase três décadas. Enlutada, enclausurou-se, licenciou-se do trabalho e escondeu-se em casa, por quase dois anos. Foram os  filhos que a ajudaram a sair deste estado depressivo.
Aos poucos foi tocando, reconstruíndo a vida. Dona de uma academia de balé, onde também dava aulas, tinha um corpo muito bonito e a pele e cabelos muito bem cuidados, lhe conferiam um aspecto muito mais jovem do que sua idade real traduzia. Mesmo após o período de abatimento em que descuidou-se de tudo, ela ainda estava em excelente forma. Porém, sempre que alguém dizia que ela devia encontrar alguém, ela respondia que jamais voltaria a amar, como amara o marido e assim, permaneceu por um bom tempo. Até que conheceu Ângelo, num congresso. Professor de dança de salão, ele era divorciado, quinze anos mais jovem e a atração entre eles foi imediata. A amizade logo se converteu em namoro, embora ela se sentisse velha demais para ele. Despreparada para viver um relacionamento depois de tantos anos, não conseguia definir e muito menos respeitar os limites de seu ciúme, sua insegurança. Temia que ele não correspondesse aos seus sentimentos, a despeito de todas as suas demonstrações e juras de amor. Bastava uma desatenção, um pequeno descuido dele, para que ela, torturada pelo medo, acabasse por afastá-lo com suas cobranças e acusações. Depois, recorria aos astros, às cartas, aos búzios e a todo tipo de simpatias, buscando respostas e o conforto que sua lógica não lhe permitia. Só então, quando os presságios lhe eram positivos, voltava a procurá-lo ou aceitava as tentativas dele de reaproximação.
A última crise deveu-se à viagem que ele faria com os filhos. Já estava tudo acertado ainda antes de se conhecerem e ele não pretendia levá-la junto, pois sentia-se desconfortável em apresentá-la à família. Ainda mais, após tantas desavenças. Quando despediram-se, ela, fera acuada, disse-lhe toda a sorte de desaforos e ameaças, jurando que jamais queria vê-lo novamente.
Passados dois dias, porém, ela começou a cair em si de o quanto estava sendo imatura e, com isso, arriscando-se a perder essa doce possibilidade de amar e ser feliz novamente. Ligou para ele, deixou um recado cheio de arrependimento e emoção, com a promessa de procurar ajuda psicológica, se necessário. Ele não retornou mas, ela, agora mais confiante, pensou que ele poderia estar sem sinal lá onde estava ou, ainda ter esquecido o telefone em casa.
Ao cabo de uma semana, em que ela ligou várias vezes e deixou muitas outras mensagens para ele, ela estava novamente angustiada. Aflita, lembrou-se de uma simpatia que costumava enchê-la de esperanças quando adolescente: somando os dígitos das placas de carros oficiais, e subtraindo nove do resultado, ela obteria um número. Alguém cujo nome iniciava-se com a letra correspondente a este número no alfabeto, estaria pensando nela. No início, começou a olhar as placas de forma distraída, sabendo que isto não passava de uma bobagem de criança. Porém, cada vez que a soma das placas resultava em dez e, após a subtração do nove, lhe permitia encontrar a letra A, sentia uma enorme alegria e segurança. Era como se, de algum modo, pudesse mesmo estar conectada ao pensamento dele, que estaria voltado para ela. Em instantes, isto tornou-se uma obsessão e procurava, no trânsito, viaturas da polícia, dos bombeiros, ambulâncias e qualquer veículo chapa branca. Foi assim que, na manhã do dia em que ele retornaria da viagem, ela seguia feliz para casa, sentindo-se linda, após algumas horas no salão de beleza. Após ser ultrapassada por um Audi preto em alta velocidade, viu, pelos retrovisores, vários carros de polícia aproximando-se também muito rapidamente. Para ter a oportunidade de ver-lhes as placas, abriu mão de pegar a saída que a levaria para casa e ficou esperando-os passar. Foi quando os passageiros do carro perseguido começaram a atirar na polícia e ela, ali, entre eles. Pensou em sair do caminho, encostar o carro, mas já era tarde demais. Baleada, ainda teve tempo de ver as placas de três viaturas que passaram por ela correndo: 2170, 2206 e 2341. Sorriu e morreu, sem ver que, no visor do seu celular jogado sobre o banco dos passageiros, piscava um nome: Angelo.

Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 22/02/2009
Alterado em 23/02/2009


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