Ele Voltou (mistério - causo)
Ele acordou cedo. Levantou-se lépido, sem esforço. Lavou-se e sentou-se à mesa da cozinha. A esposa, arrastando-se em suas chinelas serviu o café com leite fumegante, o pão quentinho com manteiga. Sentou-se ao seu lado, sonolenta. Serviu-se do café e ficou observando-o, enquanto ele comia, distraído. Pensou em puxar assunto, mas, após tantos anos juntos, sabia que ele não lhe responderia. Por seu olhar perdido, ela era capaz de seguir seus pensamentos, desde as lembranças da véspera, o dia inteiramente dedicado ao trabalho, a frustração de ver cair a noite sem conseguir resolver o problema e agora, a animação renascida com o sol, a impeli-lo para fora da casa, ferramentas em punho, para terminar o serviço. A enxurrada do final de semana havia carregado toneladas de entulho para dentro da tubulação, entupindo o bueiro em frente. Se o problema não fosse logo resolvido, a próxima chuva iria certamente provocar o alagamento do seu precioso depósito, no piso inferior da casa.
Ele levantou-se, elogiou o café, forte do jeito que lhe agradava e abaixou-se, dando-lhe um beijo delicado na testa. Voltou ao quarto, escovou os dentes e ajeitou melhor os poucos cabelos brancos. Em seguida, desceu até o depósito, de onde saiu carregado de ferramentas e caminhou até o bueiro, na rua. Retirou a grossa tampa de ferro fundido e entrou.
Por volta do meio-dia, retornou, calorento, abatido e cansado. Ainda tinha muito entulho para tirar de dentro do cano. Talvez sequer conseguisse terminar naquele dia mesmo. Embora o almoço já estivesse quase pronto, resolveu tomar um banho rápido e tirar um cochilo. De lá, não mais se levantou, vítima de um enfarto fulminante.
O velório foi concorrido e triste. Todo mundo gostava do português honesto e educado, de sorriso franco, embora raro e que, com crianças, tornava-se um bonachão.
Uma coisa, porém, desviou as atenções da tristeza coletiva: o bueiro amanheceu desentupido, limpinho. Ninguém sabia explicar, ninguém viu ou ouviu nada. Não choveu, não havia água no cano. Ele que jamais deixara de trabalhar, mesmo com a idade avançada e que tinha a fama de nunca deixar nada pela metade, finalmente foi descansar. Mas antes, terminou o serviço.
José, era seu nome. Para mim, vovô Zé. O pai do papai.
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 18/02/2009
Alterado em 18/02/2009