Brava Gente...
Lá vou eu de novo... abri a porteira, não consigo fechar...
Aí vai mais uma história das nossas viagens pelas trilhas do nordeste.
Uma coisa que fizemos muito numa dessas nossas viagens foi dar carona. Começou quando fomos à praia de Enseadinha e ao nos prepararmos para ir embora, fomos abordados por um grupo de alegres turistas, querendo carona até Porto de Galinhas. A turma toda se acomodou na caçamba, cantando e batucando em contraponto ao sacolejo da estradinha de pedregulhos e areia.
Daí em diante, sempre que podíamos, dávamos carona. E não só aos forasteiros, mas também e, principalmente, aos nativos. Pelo visto, o sistema é instituído por lá. Ao invés de paradas de ônibus, muitos vilarejos tem o ponto do dedão, onde a população consegue transporte gratuito para outras currutelas. Numa dessas paradas, pegamos um sujeito mirrado e encolhido, os braços apertados contra o peito. Rodamos com ele alguns quilômetros até a cidade vizinha onde havia também algumas pessoas a espera de transporte. Um senhor perguntou nosso destino. Como não lhe atendia, agradeceu a atenção e afastou-se do carro. Neste momento, ele reconheceu nosso carona anterior, ainda sentado sobre a caçamba e puxou assunto, perguntando-lhe para onde ia.
Ouvimos a resposta em tom de voz miúdo e calmo:
- Vou pra casa de Odália.
- Sua irmã?
- Isso. Quero ver se ela me leva ao posto de saúde.
- Está doente?
- Cortei o dedo na moenda. - e mostrou a mão enrolada num pano todo ensangüentado.
Nesta hora eu me apavorei. Desci do carro, fiz o coitado descer de cima da caminhonete e sentar-se na cabine conosco. Dei uma bronca:
- Onde já se viu, moço? O senhor sacolejando ali em cima, esvaindo-se em sangue, debaixo de um sol de cozinhar prego, arriscando-se a uma queda de pressão... Imagina se o senhor desmaia e cai dali!!
- Podemos levá-lo ao hospital direto. De lá, o senhor liga para sua irmã ir encontrá-lo. – sugeriu o marido.
- Carece, não...
- Ela tem carro?
- “Qualo” quê! – quase um sorriso – Vamos de lotação. É perto.
- Mas, moço, o senhor está sangrando muito...
- Carece, não, seu moço. Odália tá esperando.
Desistimos. O raciocínio era muito simples para nosso entendimento. Deixamos o acidentado em frente à casa da irmã, tão pobre e triste quanto a dele mesmo, numa vila pouca coisa maior.
Oferecemos carona até o tal posto. Recusaram. Odália ainda precisava esperar uma vizinha para cuidar das crianças.
Eles se despediram de nós profundamente agradecidos.
Seguimos pela estrada rezando que eles fossem logo ao hospital, pensando na robustez desse povo sofrido, na simplicidade de suas almas sem ambição...
E nós lá, na frescurinha do ar-condicionado, nos sentimos miudinhos em nosso egoísmo e mesquinharia, adeptos do conforto, da sombra e água fresca, desmoronando como castelinhos de areia ante as adversidades da vida.
Pedimos aos céus que nos dessem um pouco dessa força que havíamos acabado de testemunhar. A dignidade humilde de aceitar como dádivas as gentilezas e obséquios alheios, a sensação de que mesmo separados por quilômetros e quilômetros, por abismos culturais, sociais, religiosos e outros que tais, somos todos gente, todos irmãos, todos filhos de um mesmo Deus.
Imagem daqui.
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 13/02/2009
Alterado em 22/07/2010