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(Me)Tralhas, Trilhas e Trilhos (humor - causo)
Cruzando as estradas do nordeste, uma caminhonete 4x4, cabine dupla, turbo diesel... o bicho! Na traseira, uma Ténéré. Motivo bastante para sermos parados em cada posto de fiscalização da Polícia Rodoviária:
- E aí? Que noticias trazem de Brasília para nós?
Com tudo em ordem, incluindo a documentação, nos fazíamos de bestas:
- Tudo igual... a mesma cara de pau deslavada dos políticos, a corrupção...
Uns ainda insistiam:
- Mas não trazem nada de bom pra nós aqui, nessa terra sofrida?
- Ih! Lá também não tá fácil, não...
Tava vendo a hora da gente tomar um tiro. Não tomamos, claro, que os caras são picaretas, mas não são bestas e conseguimos aproveitar muito a viagem. Saímos de Brasília rumo a São Luis do Maranhão e de lá, viemos pelo litoral, parando nos botecos
Fomos para Barreirinhas, cidade base para se visitar os Lençóis Maranhenses. Fantástico aquele lugar.
No caminho, a primeira decepção: atolamos a 4x4.
A trilha até que não era muito ruim: dois sulcos cavados na areia fofa por pneus primevos. Talvez até um carro de passeio conseguisse segui-lo, desde que alto o bastante para que o fundo não batesse no morrinho de areia entre eles. O problema é que, no nosso caso, ele batia. E o marido começou a ficar preocupado, daquilo estar prejudicando alguma coisa sob o carro. Uma vez, pegamos uma insolação porque a mangueira de combustível do Escort arrebentou com uma pedra, na volta da praia, no meio do nada. Até hoje, quando ouço a Marina cantando "hoje eu quero te ter toda se ardendo só pra mim" repasso mentalmente uns quatro ou cinco palavrões bem cabeludos, para refrescar a pele.
Mas, voltando ao assunto e à trilha, depois de suportar uns cinco minutos de pancadinhas sob o carro, ele ponderou:
- Ah! É uma 4x4. Vou sair desta trilha e seguir pela areia.
Nem saiu da trilha. Já atolamos ali mesmo. Bonito foi ver como o povo daquela região é gentil, atencioso, prestativo. Estávamos entrando em um vilarejo, mas não havia ninguém nas ruas. Todos em suas casas, cuidando de seus afazeres. Mas foi só descermos do carro que, de todo lado, de cada portinha, aparecia alguém para ajudar. Homens, mulheres, crianças e idosos, num instante o carro estava cercado de gente. Alguns palpites e em instantes toda aquela força humana empurrava a máquina de volta aos trilhos. Agradecemos efusivamente, distribuindo biscoitos entre as crianças. Seguimos viagem aliviados, mas um tanto frustrados com o fiasco da nossa super-ultra-híper-tração 4x4. Depois descobrimos que ela estava mesmo com um probleminha, que poderíamos resolver na próxima capital do roteiro.
Alguns dias de paisagem paradisíaca depois, nem pensávamos mais no assunto. Já no Ceará, saíamos de um restaurante de praia onde havíamos parado para almoçar. Ele engatou a ré. Nada. Engatou a primeira... o motor turbo roncava zangado, mas a caminhonete nem se movia. Tração reduzida, e nada!
- Eu sabia que não devia ter parado nesta areia! - reclamou o marido.
Coincidentemente, neste instante uma família, mãe, pai e três adolescentes fornidos,  entrou no seu Kadet rebaixado estacionado quase ao nosso lado e, em menos de vinte segundos, deixava a areia movediça onde afundávamos.
Olhei para ele, tentando não rir. Meus olhos encontraram a alavanca do freio de mão:
- Ei! O freio de mão tá puxado?
Ele seguiu meu olhar. Corou, depois riu.
- Putz! Fiquei tão encucado com essa marcha bichada que nem me dei conta...
Solto o freio de mão, o carrão deslizou manso e suave para fora do areial.
- É! Essa é das antigas... Só anda com o freio de mão solto...
Seguíamos por uma estradinha de terra, ainda rindo, quando vimos um touro pastando no meio dela um pouco mais à frente. Ao nos notar, ele desandou a correr de nós pela lateral da trilha. Apesar da fuga desesperada, em instantes iríamos alcançá-lo. Ao perceber que não poderia escapar, o doido resolveu enfrentar. Deu uma meia pirueta, virou de frente para nós, abaixou a cabeça, exibindo os chifres e bateu com uma das patas no chão, na melhor expressão corporal taurina para:
- Vem! Vem, que eu te quebro! Tu é grande, mas não é dois!
Éramos. Na verdade, bem mais do que dois. Mas os dois que fizeram a diferença foram nossos anjos da guarda. Tá... eles bobearam quando nos deixaram pegar aquela insolação. Talvez gostem de vermelho e nossas peles realmente ficaram numa tonalidade escarlate digna de admiração. Mas desta vez, uniram-se ao anjo do bovino para nos fazer passar por ele voados, antes que ele pudesse partir da ameaça à ação. Pelos retrovisores ainda pudemos vê-lo olhar para nós, confuso, zangado e aliviado.
Isto é, não sei bem se ele estava aliviado.
Nós estávamos. Muito.
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 12/02/2009
Alterado em 12/02/2009


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