Ele Sempre me SurpreendeNuma manhã de natal, fomos acordados pelo telefone. Do outro lado da linha, alguém que se dizia delegado de polícia anunciava que nosso empregado Nilson estava preso e nos esperava para resgatá-lo sob fiança. Havia bebido muito na véspera e batido na mulher. Não podíamos acreditar. Nilson era um doce de pessoa, jamais havia bebido na nossa presença. Imediatamente imaginávamos que pudesse ser algum engano e eles estariam falando de Nelson, nosso ex-empregado, demitido justamente por beber em excesso e estar sempre se metendo em confusão.
Ainda assim, tivemos pena. Do jeito que o delegado falava, parecia não ter sido nada muito sério, a fiança estipulada era ridiculamente baixa, eles mesmos pareciam ansiosos por liberá-lo para estar em família no natal e não no meio de bandidos de verdade.
Nelson não trabalhava mais para nós, mas, tirando a bebida, também não era má pessoa. Se havia ligado depois de ser demitido é porque não tinha mais ninguém a quem recorrer. Sensibilizado, o marido se vestiu e foi até a delegacia, liberar o coitado.
Chegando lá, percebeu, surpreso, tratar-se mesmo de Nilson. Pagou a fiança e o deixou na casa de uma irmã.
Ele fez outras por Nilson, mas não cabe mais contá-las aqui. Na verdade, a nobreza de seu gesto não estava tanto no fato de ajudar Nilson, uma pessoa de quem ele gosta. Mas de ter se disposto a ajudar Nelson, alguém que nos deu um bocado de aborrecimentos...
Lembrei-me disso agora, porque ele não gosta de corujas. Melhor, ele não gosta da forma como elas nos ameaçam em nosso próprio quintal. A antipatia recíproca vem de quando elas atacavam nossas cachorrinhas na área circunvizinha ao prédio onde morávamos antes de nos mudarmos para nossa casa nova. A Diana até hoje tem uma cicatriz nas costas que estamos quase certos ter sido produzida pelas unhas afiadas de uma dessas aves.
Hoje ele estava saindo do escritório e passando pela sala escura quando percebeu que alguma coisa atravessou o ar à sua frente. Acendeu a luz e se deparou com uma delas, encolhida sobre o madeiramento do telhado. Abriu as portas e tentou espantá-la, mas ela voou na direção da escada, ao encontro das cadelinhas. Ele a protegeu delas e me chamou, aflito. Eu as segurei e ele conseguiu, enfim, agarrá-la. Quando estava prestes a soltá-la na varanda, observou que era filhote e que tinha uma manchinha de sangue entre os grandes olhos assustados. Ela devia ter se chocado em alguma coisa, na fuga. Pois ele quis medicá-la antes de soltá-la. Passamos rifocina e ele a olhou, até com ternura:
- Ela é bonitinha, né? Quer dar uma carninha pra ela?
Aí, já é demais, pensei. Elas vão passar a se perder aqui em casa só por conta do tratamento vip. Disse desinteressada:
- Não... ela se vira.
Ele, então, a soltou delicadamente no chão da varanda, não antes de ela tê-lo agarrado com as patinhas nervosas, arranhando-lhe os dedos. Ainda brinquei que ela agora vai ter história para contar aos outros, de como conseguiu escapar do monstro cabeludo, depois de ser torturada com um cotonete cheio de líquido fedorento.
Ele riu e ficou controlando nossas cachorrinhas para que não fossem atrás do pobre pássaro.
Fiquei olhando aquele homem grande, às vezes mal-humorado, acompanhando como biólogo o vôo incerto do bicho até a segurança de um poste.
E pensei comigo...
Sou mesmo uma mulher de sorte. Depois de dezesseis anos de convivência, este homem ainda me surpreende.
Imagem daqui.
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 28/01/2009
Alterado em 25/08/2010