Textos

De Pé Quebrado
Quando solteira, tinha o hábito de acampar com meu irmão e nossa turma do teatro.
Costumávamos ir a Topázio, um rio próximo a Cristalina com cânions, poços, corredeiras e piscinas naturais. Gostávamos tanto de lá que às vezes, íamos de ônibus, descíamos na rodovia e andávamos cerca de oito quilômetros, para alcançar o local onde montávamos as barracas. Numa dessas vezes, chovia tanto que, quando terminamos de montar as barracas, muitos não tinham uma peça de roupa seca para passar a noite. Quem tinha mais de uma emprestou aos outros. Foi uma das piores noites que já passei, nunca senti tanto frio na minha vida. No dia seguinte, as roupas penduradas sobre as barracas, moitas e troncos de árvores secaram e pudemos aproveitar o passeio.
Normalmente, acampávamos em uma prainha, a uns dois quilômetros do ponto de estacionamento. Durante o dia, descíamos a trilha marginal passando por corredeiras, quedas d'água, mergulho, subidas e descidas pelas pedras. O ponto final do trajeto era a Panela do Diabo, um buraco no meio do rio, por onde só se podia descer praticando rapel, tomando cuidado para não esbarrar em nenhuma das muitas colméias que se espalhavam pelo fosso.
Havia uma cachoeira que nos permitia entrar por trás da queda da água e, lançando-nos para frente, ser paridos pelas águas numa grande piscina natural. Lalá não sabia nadar, mas era louca para experimentar a brincadeira. Um dia, propus-lhe sairmos juntas, de mãos dadas, e eu a conduziria em segurança até a margem. Não contava, porém, que ela entrasse em pânico, ao ser lançada. Soltou-se de minha mão e, quando a alcancei, estava apavorada e agarrou-me, empurrando-me para baixo. Tentei emergir e acalmá-la, mas ela não me ouvia e apenas me afundou de novo. Quando consegui tirar o rosto de dentro d'água pela segunda vez, gritei por socorro. Os amigos vieram ao nosso encontro e a tiraram de cima de mim.
Já escrevi sobre minha infância e sobre o quanto eu sofri entre cinco irmãos homens para definir meu espaço, conquistar igualdade e independência. Essa batalha transformou-me numa guerreira empedernida, quase uma feminista. Não saia por aí queimando sutiãs, mas tinha por hábito desprezar gentilezas e cavalheirismos. E isso era particularmente contumaz nos acampamentos. Os rapazes ofereciam ajuda às moças nas pequenas escaladas e descidas e eu, com um enorme sorriso, sempre recusava a gentileza, mostrando-me auto-suficiente.
Porém, num determinado trecho do caminho, eu sempre tive medo e gostaria muito de ter ajuda para atravessá-lo. Acontece que, justamente ali, era impossível a aproximação de uma mão amiga. Para alcançar o ponto de salto mais alto, que tinha cerca de seis metros, precisávamos nos esgueirar pelos paredões de pedra do cânion. Dizem que para baixo todo santo ajuda, mas todos os pontos com escaladas e subidas não me intimidavam mais do que um pequeno degrau de cerca de um metro de altura. O nível mais baixo era um pouco recuado e não oferecia muitos pontos onde se agarrar. Era preciso sentar-se, procurando alcançar com a ponta dos pés o nível inferior e lançar o corpo à frente, andando de costas para a parede, até que a área onde pisar se alargava novamente. Dois metros abaixo, o rio passava furioso num estreitamento. Pois meu medo não era infundado: uma vez eu caí, exatamente nesse ponto. Felizmente, era o período de seca e as águas estavam baixas, o que me livrou de ser carregada, chocando-me nas muitas pedras do rio, até que ele se alargasse de novo. Por outro lado, também não havia profundidade suficiente para amortecer a minha queda e o resultado foi um tornozelo destroncado. Ainda tentei prosseguir com o passeio, mas o inchaço foi quase imediato. Consegui caminhar boa parte do caminho até o acampamento. De lá pra frente só carregada. Os rapazes, aqueles mesmos cuja ajuda eu dispensava tão soberbamente, alternavam-se na cadeirinha para me levar até o carro. Um deles carregou minha bagagem e dirigiu pelos 120 quilômetros que nos separavam do hospital em Brasília, aturando meus gemidos a cada solavanco. Passei umas duas semanas de botinha branca, assinada por toda a turma do acampamento.
Topázio nos acolheu para muitas aventuras e alguma desventuras. Uma vez, já desembarcando em Brasília, corri para pegar o ônibus e não vi a corrente atravessando o caminho, à altura da minha canela. Caí como uma jaca, por cima do violão, não sei como não o quebrei ou me quebrei. Noutra, meu irmão buscava lenha para a fogueira quando encontrou um ninho de marimbondo. Recebeu várias picadas. E quando dividimos os mantimentos em dois carros e o que levava a comida se perdeu? Quando eles chegaram, morrendo de sede, estávamos famintos e muito, mas muito bêbados...
Programa de índio, com todas as letras.
Agora, depois de saber tudo isso, pergunte se valeu...
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 13/01/2009
Alterado em 13/01/2009


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