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É Uma Questão de Respeito


Michelle era jovem, linda e de família abastada. Trabalhando mais por conveniência política do que por necessidade ou aptidão, acabou içada a uma alta posição no Ministério, onde era nossa chefe. Por seu jeito simpático e, até pouco descompromissado com as exigências do trabalho, ela nunca se estressava com ninguém e, assim, era querida por todos.
Foi por isso que Joca, com viagem marcada a Cuba, foi lhe perguntar se queria que lhe trouxesse alguma coisa. Ela pensou um pouco e pediu:
- Traga então uns charutos para o meu marido.
Pegou um papel e anotou as marcas: Hoyo de Monterrey, Montecristo ou Cohiba.
Quando Joca, já em terras de Fidel, foi procurar os tais charutos, quase teve um infarte. A menor embalagem não saia por menos de quatrocentos dólares. Havia a alternativa dos genéricos, pela metade do preço, mas como ela não havia sequer aventado essa hipótese, ficou temeroso de que, depois, ela não quisesse ficar com o pacote. E, cá entre nós, o Joca já se achava meio coroa para iniciar o hábito de fumar. Ainda mais, charutos. Comprou então um pacote original.
Ao chegar na alfândega, observou, horrorizado, que os fiscais retiravam das malas e cortavam os charutos com tesouras. Um deles lhe perguntou se levava charutos. Apavorou-se: se mentisse e fosse descoberto, poderia ir parar em masmorras Castrenses. Se dissesse a verdade, veria um a um os seus valorosos quatrocentos dólares sendo picotados a tesouradas. Optou pela mentira. Felizmente, não foi descoberto e desembarcou horas depois, no Brasil, com o precioso pacote na bagabem.
No primeiro dia útil seguinte, lá foi ele, feliz à sala da chefe, entregar a mercadoria.
Ela ficou satisfeita pela lembrança e agradeceu efusivamente o presente.
Ele pensou consigo: "Peraí, Michelle! Você não está entendendo". Mas ante a tranqüilidade com que ela mudou de assunto, ele percebeu que quem não estava entendendo mesmo, era ele.
Sem graça de voltar a cobrar, contabilizou o prejuízo em fundos perdidos e tocou o barco.
Mas, ficou mais esperto. Um dia, ao entrar na sala dela, viu-a concluir, por telefone a negociação de uma viagem. Nos minutos em que esteve acompanhando o assunto, percebeu que a coisa já beirava os dez mil reais. Ela pegou de dentro de sua Louis Vuitton autêntica um cartão de crédito e repassou o número ao seu interlocutor. O cartão estava com o limite estourado. Pegou outro, mesmo resultado. Mais um, igual. Chamou a secretária. Foi quando se deu conta da presença do Joca:
- Você tem algum cartão de crédito aí?
Ele respondeu que não, que o seu estava em sua sala, no andar de baixo. E completou:
- E ele não é internacional...
Ela então olhou pra secretária que havia entrado segundos antes:
- E você, Doralice?
Doralice, mais do que depressa, pegou carona nas palavras do colega:
- Ih! Michelle... o crédito do meu é tão baixinho. E ele também é só nacional...
Nisso, Luciana, outra colega, entra na sala:
- Oi, gente!
Michelle sorriu:
- Me empresta seu cartão de crédito? É internacional?
Como trabalhamos com informática, é comum emprestarmos cartões de crédito e outros documentos para viabilizar alguns testes em sistemas. Luciana pegou o cartão e entregou.
Ao acompanhar, porém, a conclusão da negociação, começou a preocupar-se. Sentou-se ao lado de Joca. Perguntou, num sussurro:
- Joquinha... o que está acontecendo?
- Seu cartão tem programa de premiação? - ele perguntou, no mesmo tom de voz.
Ela assentiu com a cabeça, assustada.
- Fica tranqüila, então... você vai ganhar muitos pontos...
- Mas...
- Muitos pontos... - repetiu ele, em tom mais grave.
Não é que Michelle seja abusada. É que, nascida em berço de ouro, nunca se preocupou com dinheiro e acha que esse assunto é pequeno demais para afligir qualquer um de seus conhecidos.
É uma realidade tão distante que, numa ocasião, viajou a serviço com Adriana e, de cara, já quis ficar num hotel muito melhor do que aquele que o Ministério pagava. Adriana disse que não poderia acompanhá-la. Pois Michelle bancou tudo para ela: as diárias do outro hotel e até a participação das duas numa festa na cobertura, cheia de colunáveis, regada aos melhores uísques e champagnes, onde foram servidas as mais raras iguarias.

Achou Michelle uma pessoa horrível?

Acha que ela merece uma lição?

De certa forma, somos todos assim, um pouco. Dinheiro, sentimentos, medos, convicções, preferências políticas, sexuais, religiosas... Cada um tem as suas e, por mais que elas nos pareçam pouco importantes, dadas as nossas próprias vivências, precisamos conhecê-las e respeitá-las.

E, nem sempre fazemos isso. Zombamos do nosso colega que tem medo de avião, choca-nos a audácia do feiosinho que levou um fora da garota mais bonita do colégio, provocamos a moça que não comemora aniverários por causa da religião.

É brincadeira, não é maldade... Mas tudo é uma questão de referencial. No nosso universo, tais coisas são tão insignificantes quanto o dinheiro é para Michelle, mas para o outro, podem pesar mais do que um rombo de quatrocentos dólares no orçamento de um assalariado.

Pense nisso!

Imagem daqui.

Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 27/10/2008
Alterado em 21/07/2010


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