Textos

Engolindo Sapos
Em nosso terreno, a um canto distante cerca de uns vinte metros da casa, havia muitas depressões provocadas na terra cascalhenta e argilosa pela movimentação dos tratores e caminhões que serviram à obra. Quando nos mudamos, iniciava-se a temporada de chuva. As irregularidades do piso converteram-se em verdadeiros charcos, onde pululavam sapos, pererecas e rãs de todos os tamanhos e cores, de peles lisas ou carunchudas e venenosas. Nas águas cristalinas serpenteavam girinos zoiúdos, que protegiam-se do sol e predadores nas raízes do mato que insistia em se espalhar por ali.
Nosso sono à noite era embalado pela cantilena de vários tons e ritmos: um coral completo com coachares sopranos, contraltos, tenores e baixos. Somado ao canto do galo e mugido das vacas vindos da chácara ao fundo do terreno, tudo muito bucólico, poderia ser até uma espécie de lua de mel no campo, se não fosse a constante preocupação com nossas cachorrinhas.
Tá! Se tem uma coisa que me irrita nas minhas filhotas é essa incapacidade que elas têm de aprender com os próprios erros. Deixá-las sair para a "casinha" era uma guerra de nervos. Os anfíbios, atraídos pela luz da casa e dos postes, espalhavam-se pelas proximidades, caindo nos ralos, vasos de plantas e na grelha de escoamento pluvial na entrada de automóveis. As meninas sentiam a presença dos bichos de longe e os encurralavam, latindo furiosas, enquanto eles as ignoravam, cientes do seu poder de fogo.
Elas, ao contrário, só consideravam o fato deles serem intrusos e menores do que elas. Se bem que, nem acho que esse último detalhe fizesse muita diferença, já que elas atacam com igual bravura pessoas e outros animais, bem maiores. Resumindo: na primeira vez, foi a Diana que levamos correndo para a veterinária, a boca espumando, pupilas dilatadas e um quase transe provocado pelo veneno do cururu. Na segunda, a Anita. Na terceira, a Diana de novo e depois, perdemos as contas. O tratamento era sempre o mesmo. Tornamo-nos especialistas nas batracotoxinas que têm ação neuro, cárdio e hepatotóxica, ou seja, atacam fígado, coração e "dão barato". A medicação é um coquetel antitoxinas, anti-rítmicos e antidepressivos. As bichinhas chegam em casa calminhas e a gente, iludido, pensa que também um pouco mais sábias. Ledo engano. Assim que descem do carro vão direto ao local do último confronto atrás de vingança.

Demos uma nivelada no terreno e a última estação diluviana na capital não foi tão pródiga em batráquios, mas ainda saímos de casa com elas à noite armados de vassoura, pá e sacos plásticos para garantir que não houvesse novas batalhas, nas quais a maior vítima era, quase sempre, nosso já combalido bolso pós construção.


Comi carne de rã uma vez. Temperada e assadinha. Mas foi uma experiência horrorosa. Eu estava em uma forte crise de gastrite, estômago e cabeça doendo, uma tremenda ressaca, embora não tivesse tomado uma gota de álcool. Era um sábado e eu tive aula. Ao chegar, por volta das onze da manhã, tomei os placebos de sempre e dormi até o meio da tarde, quando, ziquizira debelada, bateu aquela fome. Não havia ninguém em casa e fui procurar restos do almoço. Abrindo o forno, encontrei um prato com pedacinhos de uma carne branca, que me pareceram tratar-se do mais inofensivo peito de frango. Comidinha de hospital, excelente para alguém que se encontrava convalescente. Ao provar o primeiro bocado, cuspi tudo de volta no prato, lavei a boca, escovei os dentes. Não que a carne fosse ruim. Difícil afirmar isso. O que senti foi o gosto acre do tempero à base de vinagre. Completamente ressaqueada de novo, tomei um chá preto com torradas, antes de voltar a dormir. Nunca mais provei dessa iguaria. Mais por falta de oportunidade do que por medo: sou mesmo ousada quando o assunto é paladar.
Talvez, inadvertidamente, tenha passado às cadelinhas essa minha bravura e elas estejam tentando exercitá-la. Pelo menos nas investidas, elas estão alguns anos luz à minha frente, pois de moscas a coelhos, passando por baratas, lagartixas e calangos, sapos e até meus peixes, elas já tentaram provar quase de tudo. Vendo as repetidas reportagens sobre as estranhas preferências culinárias dos anfitriões das Olimpíadas deste ano, creio que eu seria capaz de tirar um pouco a diferença. São escorpiões e gafanhotos fritos no palito, parecem mesmo apetitosos, para alguém como eu que já provou bunda de tanajura e tatuí.

Só não me peça para provar carne de cachorro. Se filho de peixe peixinho é e se eu sou mãe de cachorrinhas, acho que seria canibalismo, né?
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 19/08/2008
Alterado em 19/08/2008


Comentários