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Uma Velhinha Portuguesa com Certeza
Era velhinha, quase surda. Portuguesa com certeza, dessas que trocam o Bê pelo Vê. Sua imagem era quase uma caricatura de nossos patrícios d'além mar. Meio corcunda, só usava roupas escuras, saias longas, blusas de manga comprida. Os cabelos, de mais de metro de comprimento, prendia num coque, no alto da cabeça.

Acordava muito cedo, cuidava das galinhas, das cabras, da horta. Às dezessete horas se recolhia. Não tomava banho. Limpava-se com um pano úmido, os cabelos com querosene.

Os filhos tentaram em vão incutir-lhe o hábito da higiene tupiniquim. Uma vez, ela já bem velhinha e debilitada, as filhas deram-lhe um banho de verdade, lavaram-lhe os cabelos com xampu e creme rinse, ignorando-lhe os gritos de protesto:

- Vocês estão me matando!

Nós ríamos do lado de fora do banheiro, imaginando a luta sangrenta que ocorria em seu interior. Mas, ela era limpinha. Tinha o cheirinho das roupas guardadas entre sachês de camomila, das casas iluminadas a lampião.

Ainda era jovem quando enviuvou. Na casa de pau a pique, criou os seis filhos sozinha, com a força do trabalho na pequena chácara. Muitos foram os sacrifícios. Fazia a xepa da feira, para poder encher a sacola, com os trocadinhos mirrados da pensão deixada pelo marido. Comprava os produtos da estação e não foram raras as vezes em que passaram toda a semana comendo jiló ou chuchu, porque era esse o produto que ela podia pagar. Os filhos mais velhos, tão logo atingiam idade para trabalhar, ajudavam. Duas das filhas tornaram-se freiras. Os outros todos se casaram, dando-lhes netos que eram sua felicidade. Minha mãe era sua filha caçula e é difícil afirmar se o casamento com meu pai lhe deu tanta alegria quanto tristezas lhe deu nossa mudança para Brasília, dez anos mais tarde. De qualquer modo, em todas as férias íamos vê-la.

Lembro como se fosse ontem, uma das tias freiras anunciando ao entrar em casa:

- Deus esteja nesta casa.

Nós respondíamos, ensaiados:

- Ele está no meio de nós.

E completava, após cumprimentar a mãe:

- Está feliz, hein? Está de casa cheia!

A velhinha sorria desdentada. Assim que os adultos descuidavam, passava-nos moedinhas, para que fôssemos tomar picolé. Nós recusávamos, mas ela ficava tão sentida que passamos a aceitar, sabendo que, de uma forma ou de outra meu pai iria repor. Ela e papai eram o oposto da típica relação genro e sogra. Meu pai a tratava como a uma mãe e ela tinha por ele um enorme carinho e gratidão. Aliás, a vovozinha era mesmo a mãe do bairro. Lembro um domingo de dia das mães em que uma moça veio visitá-la, e cumprimentá-la pela data, já que não podia cumprimentar a própria mãe, que morava distante. Emocionante a cena, a moça tinha lágrimas nos olhos enquanto se despedia.

Diariamente ia à igreja. Atravessava a perigosíssima linha do trem, para desespero dos filhos e netos. Meus pais compraram uma casa, onde ela viveu até o final de seus dias, a meio caminho entre o casebre e a igreja. Enquanto pode, porém, ela continuou desafiando os trilhos, para chegar até o antigo lar e continuar cuidando da horta e criação. Tinha boa saúde e enxergava bem, dispensando o uso de óculos até para costurar. Era uma velhinha guerreira, auto-suficiente. Várias vezes tentou-se convencê-la a aceitar uma empregada que lhe fizesse companhia e lhe ajudasse no serviço da casa. Ela recusava sempre. Com muito custo, numa vez em que adoeceu, conseguimos convencê-la e instalar uma campainha para que, numa emergência, ela pudesse acionar a vizinha, moça simpática que lhe tinha muito carinho. A campainha nunca tocou.

Quando a chácara de onde ela retirou o sustento para os filhos foi desapropriada, alguma coisa nela quebrou-se por dentro e os anos seguintes assistiram impassíveis o avanço da senilidade.

Ela  morreu com mais de noventa anos, ainda mais surda e completamente desmemoriada:

- Quem é esta garota? - perguntava, apontando para mim.

- É a Nena, mamãe, filha da Conceição. - gritava-lhe ao ouvido minha tia freira, a única que ela reconheceu até quase os último dias.

- Ah! Mas é a Terezinha... - admirava-se ela diante da minha semelhança física com a Tereza, minha tia paterna.

Passados alguns instantes, ela apontava para mim, de novo:

- Quem é esta garota?

Também não reconhecia minha mãe, mas nunca esqueceu meu pai.

Dona Albina era uma velhinha do bem. Recolhia e cuidava de gatos perdidos, ajudava as pessoas como podia. Somente às vésperas de sua partida deixou de ir à missa diária. Tinha lugar cativo na Igreja. É quase certo que tem lugar cativo no céu.



Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 06/08/2008
Alterado em 26/07/2010


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