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O Marido Teve um Infarto


Ela estava lá, cantando pro Lula e... Não, não é força de expressão. Ela estava mesmo lá, cantando para o Presidente Lula, Dona Marisa e alguns asseclas, na missa de Natal de 2005, no Palácio do Planalto, como integrante do seleto grupo de contraltos do Coral Correios em Canto.
Seu telefone, guardado na bolsa, escondida atrás do altar improvisado, parecia vibrador de ninfomaníaca. Já provocava alguns pontos na escala richter do tablado. Depois da apresentação, abraços, fotos com o presidente, todo aquele clima festivo de véspera de Natal. Quando, finalmente, pegou a bolsa, ainda a sentiu tremelicar, mas a pessoa desistiu. Pegou o aparelho: trocentas chamadas não atendidas. A metade, do marido. A outra metade, de um número desconhecido e do número do melhor amigo do marido. Ligou para o primeiro. Desligado. Ligou para o amigo:
- Putz! Até que enfim!
O tom de voz apreensivo e ansioso dele deu a pista. Algo não estava muito certo. E ele, com a sutileza de um rinoceronte enfurecido numa vidraçaria, a atropelou com as notícias, não sem antes um "não se preocupa, ele está bem" que sugeria que o marido só não estava morto ainda porque o socorro chegou a tempo de entubá-lo para que ela pudesse despedir-se com alguma dignidade. Mas, não corresse, não, pra ver...
Correu. No caminho, ia lembrando. O marido faz parte de um grupo de mountain bikers. Na trilha que fizeram na véspera, um rapaz de outro grupo faleceu. Como o ponto de encontro é o mesmo, eles haviam encontrado o sujeito, falado com ele, momentos antes. Ao final da trilha, souberam do acontecido. Infarto. Ninguém acreditaria: um homem jovem, pouco mais de quarenta anos, atleta...

Não era mais horário de visita na UTI, mas ela foi autorizada a entrar para vê-lo, já que ele estava consciente. Também precisava livrá-lo da bagagem e roupas, que não eram permitidos ali.
Ele parecia bem, não estava entubado. Apenas deitado confortavelmente no meio de um monte de aparelhos luminosos, algo parecido ao painel da Enterprise. Sorriu ao vê-la, contou-lhe o que houve. Desde a véspera, estava sentindo dores no peito. Não queria preocupá-la, mas depois do enterro do colega, começou a ficar impressionado e resolveu ir ao médico. Fez uns exames e saiu para resolver umas coisas. Quando voltou para pegar o resultado, a enfermeira não quis entregar, chamou a médica que o cercou e foi dando a notícia aos pouquinhos:
- Seu exame não está muito bom.
- É? - respondeu ele, um pouco preocupado.
- É! Vamos ter que fazer mais alguns exames.
- Ok.
- Para isso, você será internado...
- Anhé?
- É!
- ... Ok!
- Na UTI.
- Hein!?
Explicou-lhe que havia algumas enzimas no sangue, associadas ao rompimento de fibras musculares. Ele retorquiu que isso era natural, já que, na véspera, havia pedalado mais de trinta quilômetros, no sobe-desce comum dos trajetos de montanha. Ela explicou que aquele tipo de enzima estaria mais associado às fibras musculares cardíacas. Sintoma inequívoco de infarto.
- Mas, eu não estou sentindo nada. Só essa dor no peito que acho mais que seja muscular...
Não houve jeito: UTI. Chegando lá, foi barrado por uma enfermeira:
- Pois não! O senhor veio visitar alguém? Ainda não é horário e...
Ele lhe entregou o papel com a prescrição médica.
- Nossa! Me desculpe, espere, me dê isso aqui. - E tentou retirar-lhe a mochila do ombro, quase desabando com ela no chão, pois, apesar de a esposa nunca ter encontrado, ela é capaz de apostar que ele carrega as culpas do mundo lá dentro, junto com o notebook.
Deu-lhe a camisolinha, que ele trocou num banheiro lá mesmo. Em seguida, o instalou na cama-painel-de-bordo de onde ele tentou ligar várias vezes para a esposa e, ao ver que a bateria estava acabando, passou a incumbência ao amigo.
Três dias na UTI. Quem já esteve lá, ou teve algum parente que passou por isso, sabe como é. Eles não dão qualquer informação fora daqueles horários definidos - que podem atrasar sem aviso prévio. O horário de visita é ridículo e o número de visitantes, ínfimo. No segundo dia, depois de passar horas tentando alguma informação sobre ele, ela começou a chorar de preocupação, no meio da apresentação que o Coral fazia no Lar dos Velhinhos, preocupando coralistas e idosos que se uniram a ela em oração.
Enquanto isso, ele virava o protetor dos frascos de comprimidos da UTI: ouviu a "conversa" de uma enfermeira com a senhora que ocupava o leito em frente ao dele:
- Nossa! Está frio aqui! A senhora não está com frio? Aperta minha mão se quiser um cobertor.
Ela deve ter apertado, pois a enfermeira saiu, pedindo a outra que providenciasse o cobertor. Passado algum tempo, vendo que o pedido não era atendido, ele chamou uma das enfermeiras que passava apressada e exigiu, veementemente, que providenciassem conforto à pobre senhora. No que foi atendido prontamente, pois mesmo naquela camisolinha ridícula, quando ele faz cara de bravo, ninguém desarmado tem coragem de enfrentar.
Ao receber alta da UTI, ainda ficou internado em um apartamento por mais dois dias, saindo apenas na antevéspera do Natal, com recomendações sobre dieta (espartana), atividades físicas permitidas (nenhuma) e remédios para tomar (multicores, multiformes, múltiplos).
Só depois de muita insistência da família e dos amigos é que, meses mais tarde, consultou um outro médico, especialista na saúde do atleta. Este lhe disse que as tais enzimas eram mesmo decorrentes do excesso de esforço físico, que o coração também tem rompimento de fibras nessas circunstâncias e que esse diagnóstico pode sim, ser confundido com o de um infarto, mas não era o caso. Deu-lhe alta da medicação, dispensou-o da dieta e liberou a prática de exercícios.
Receberam o novo diagnóstico com euforia e, no final de semana seguinte, foram comemorar com uma partidinha de tênis, seguida de almoço numa churrascaria rodízio.

Em casa mais tarde, ele sentiu uma forte pontada no peito.

Eram só gases e um arroto resolveu.

Vai assustar quem tem coragem!!!
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 10/07/2008
Alterado em 07/10/2010


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