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Não Há Limites para a Estupidez Humana


Dia 25 de maio. Estou com muita fome e calor. Venho seguindo o rastro delas, há dois dias e já posso sentir-lhes o cheiro, ouvir-lhes os sons. Procuro ficar contra o vento, para que elas não me percebam. Aproximo-me lentamente. De repente, sinto um tremor. Assusto-me, mas a proximidade delas e a fome que me impele em sua direção são mais fortes e continuo avançando. Um novo tremor me faz estacar, ligeiramente confuso. Mais um e, finalmente, também elas o percebem e iniciam um descontrolado movimento de fuga. Não tenho tempo de lamentar ao sentir minha refeição escapando para longe: um violento estrondo, seguido de mais tremores e o chão começa a mover-se sob mim. Equilibro-me como posso, enquanto o enorme pedaço de gelo desprende-se do continente gelado e inicia uma estranha viagem por mar.

Penso em lançar-me nas águas geladas, mas até que alcance a borda de minha ilha flutuante, já estou demasiado longe da costa. Faminto e fraco como me encontro, sei que jamais conseguiria alcançá-la.

Passados alguns dias, sinto-me desidratado, cada vez mais faminto. Lamento que as focas tenham escapado. Sem abrigo, penso que derreterei ao sol. Consigo sorver alguma água das pequenas poças que se formam sobre o gelo derretido, mas não basta.

Sinto-me fraco, impotente. Desde que começou esse calor, tudo tem sido ruim. Por causa dele, a população de focas e pingüins diminuiu assustadoramente e agora preciso procurar por vários dias até conseguir alguma presa. Se já não bastasse tudo isso, eis que me encontro navegando a esmo pelo Atlântico, rumo a sabe-se lá que rincão aquecido do mundo.

Dia 12 de junho, vejo um estranho volume na água. É negro, tem um formato linear, solta fumaça e mancha as águas com uma borra oleosa. Passo por ele sem chance de aproximação, mas um delicioso cheiro de carne fresca me invade as narinas. É um cheiro diferente do que estou acostumado, mas meus instintos me dizem que deve ser saborosa. A fome torna-se ainda mais excruciante. Depois disso, passo a ser seguido por um estranho pássaro barulhento, com asas que giram sobre a cabeça e não como as dos deliciosos pingüins que eles usam para nadar ou de outros pássaros que movimentam-se graciosas ao lado do corpo durante o vôo.

Quando ele se aproxima muito, sinto novamente o cheiro de carne. Adocicado, suave.

A fome e a sede dominam meu corpo e tenho meu primeiro desmaio. Outros se seguirão.

Dia 20 de junho. Com um baque seco, o bloco de gelo, ou o que restou dele, encosta em terra firme. Acordo, confuso, débil. Sinto o cheiro, o delicioso cheiro de carne adocicada e consigo reunir o que me resta de energia para lançar-me sobre sua origem: um grupo de estranhos seres, bípedes como os pingüins, mas muito diferentes. Eles não parecem ter medo de mim, parecem mesmo empolgados de me ver, emitem sons articulados, e apontam para mim umas coisinhas pretas, que fazem ruídos estalados, como o do gelo se quebrando. Porém, quando me aproximo mais, eles gritam e começam a correr, deixando para trás os caixotinhos de estalos.

Ouço um estampido. Mais um. Dói-me o corpo e a cabeça. Sinto gosto de sangue na boca, vejo meus lindos pelos brancos tingidos de vermelho. Novo estampido e eu caio. Os bípedes que fugiam voltam a aproximar-se, pegando novamente as caixas pretas, novos cliques. Sei que estão a poucos metros de mim agora, mas não consigo mais vê-los. Nem seu apetitoso odor de carne fresca posso mais sentir. Sinto frio. Aos poucos, vou desfalecendo. Um torpor muito parecido com o que sinto ao recolher-me para hibernar toma conta de mim. Eu não sei como sei, mas sei que eu não acordarei mais. Nunca mais.

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Este texto é uma homenagem. Não, esse texto é um desabafo.
Melhor, este texto é um lamento pelo magnífico exemplar de urso polar morto na Islândia, provavelmente após passar semanas viajando desde a Groenlândia sobre um bloco de gelo que se desprendeu da costa.

Nos últimos quilômetros da viagem, foi monitorado pelas autoridades Islandesas. Ao desembarcar no País, confuso e faminto, lançou-se sobre um grupo de jornalistas que documentava o fenômeno. Foi covardemente abatido por policiais, que não portavam munição tranqüilizante.

Li esta notícia na Isto É. Na Internet encontrei outra versão, de que o animal teria sido visto somente já na Islândia e, ao atacar jornalistas, foi abatido porque, por estar muito fraco e doente, não resistiria aos tranqüilizantes. Estranho supor que resistiria à munição fatal, mas... vá entender a genialidade humana.

O fato é que, em decorrência dos desastres ambientais provocados por nós, amos e senhores de Gaia, não foi o primeiro e não será o último animal a ser afastado de seu habitat natural para ser estupidamente assassinado entre os (des)humanos.

Imagem daqui.
Caso queira ver a reportagem...
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 09/07/2008
Alterado em 03/08/2010


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