Metida a Besta
Jade é uma boxer trapalhona de oito anos. Era da minha cunhada que mora em apartamento. De lá, depois de destruir roupas, móveis e enfeites, foi parar na casa da minha sogra. O problema é que minha sogra já tinha uma outra boxer, a Bela, irmã mais velha da Jade, e as duas começaram a brigar. Na terça de carnaval, ao chegarem do almoço, meus sogros se depararam com o cenário de um massacre, a Bela muito machucada, prostrada no chão, imobilizada pela Jade. Para evitar o pior, adotamos a campeã. Cabe uma informação. Meu sogro é coronel reformado do exército. Trata os cachorros como se fossem soldados. Por favor, isso é só uma piada. Não levem para o buraco negro da maldade e nem vão sair por aí dizendo que meu sogro tratava os soldados como cachorros: ele nunca afagou a cabeça de um soldado.
Quando a Jade foi lá pra casa, tentamos manter o regime militar. Mas é difícil. Nossas duas cachorrinhas são dois bebezinhos, dormem no nosso quarto, numa caminha macia, enroladas num edredom de casal. Como não são muito fãs da ração, misturamos com frango moído e elas ainda fazem cara de enjôo. Então ficamos em volta, paparicando:
- Come, magrelinha, tá tão gotooooso!! Hummmm!
Um dia a Jade aproveitou uma distração, invadiu a casa e limpou os pratinhos das duas. De lá pra cá, não quer mais saber da ração. Não come mesmo. Fica plantada na porta, com cara de quero frango. A gente, com pena, dá biscoitinho e outros petiscos. Hoje de manhã, ao sair de casa, deparei-me com ela parada ao lado do prato cheio de ração, esperando um biscoito. Brinquei:
- É Jade... Nesta casa, até cachorro é metido a besta.
Tudo isso pra dizer ao caro leitor que eu cheguei a esta conclusão. Eu sou mesmo muito da metida a besta.
Conheço um monte de piadas e tenho lido muitos bons textos no Recanto e fora dele, que apresentam um estereótipo da mulher ao qual eu não me encaixo. Não me ligo em moda, quase não uso maquiagem, não tenho uma infinidade de sapatos e bolsas, nunca gastei um centavo com jóias, minha TPM é branda, quase não tenho cólicas e dor de cabeça nunca foi desculpa, não sou uma neurótica ciumenta, nunca quis ser mãe e jamais sonhei com casamento: já morava com meu marido há alguns meses antes de capitular às súplicas de nossas famílias. Nosso casamento foi tão simples que chegou a ser hilário. Ainda vou escrever sobre isso.
Adoro futebol, não assisto novela, séries, filminhos água com açúcar, programas de auditório, reality shows. Odeio pegadinhas e não tenho muita paciência para a maioria dos programas de humor enlatado que passam hoje na telinha. TV para mim, é só para assistir o noticiário, esporte, desenho animado e bons filmes. Aliás, e por isso me considero metida a besta, tenho ojeriza a tudo o que é muito popular - tirando as piadas, claro -, mediano, que homogeneíza as pessoas. Detesto música sertaneja, funk, pagode, axés e pops afins.
Na internet nunca me rendi ao MSN e nem ao Orkut, despendendo meu tempo em coisas úteis, como a construção e atualização de sites, publicação dos meus textos e leituras. Bestíssima!!
Até que com relação a comida eu não sou das mais chatas. Boa boca, só não consigo comer pepino cru ou fígado de jeito nenhum. Também nunca tentei ração de cachorro. Taí: até nisso sou metida a besta. Enquanto todo mundo faz cara feia pra alguma coisa, eu, acima da média, nunca dei trabalho à mamãe ou ao marido. Nem na hora de escolher restaurantes. Sei me comportar como uma mocinha nos mais refinados, mas não recuso um PF no kombão da Esplanada, aquele onde o cara que cuida das carnes na chapa limpa a testa com a mão e ao sacudi-la faz aumentar o sssccchhhiiiiiiiii da fritura. Não é nojento! Como boa metida a besta que sou, acho "pitoresco".
O marido também é motivo pra eu ser metida a besta. Tem os gostos parecidos com o meu, embora seja um pouco mais fresco com relação à comida e ambientes e, o que é pior, mais permissivo quanto à qualidade da programação da TV. Por outro lado, não deixa o tampo do vaso levantado ou respingado, não deixa a toalha molhada em cima da cama, nunca esqueceu o meu aniversário ou o de casamento e sempre se esforça pra fazer coisas românticas em comemoração. Houve deslizes, claro. Escreverei sobre eles depois. Acho até que ele me é fiel... Acho mesmo. Tem energia acumulada demais quando chega em casa para que eu consiga acreditar que ele deu alguns choques na rua... Ou ele é fiel, ou é o super-homem. Seja como for, é ou não é motivo para ser metida a besta?
No geral, sou legalzinha, bem humorada, não faço fofoca, pouca coisa me tira do sério. Nenhum motivo para ser metida a besta, mas ainda assim, eu sou. Fazer o quê? Fico toda orgulhosa de ser do jeito que sou, enquanto vejo tanta gente mal-humorada, brigando à toa e se deixando ficar triste por besteira.
Visto assim, parece que eu não tenho defeitos. Ia ser mesmo muito metida a besta, se dissesse que não. Mas, como boa metida a besta que sou, não vou ficar perdendo o seu tempo e muito menos o meu com eles.
Pensando bem, metida a besta como eu sou, acho que posso dar exemplo, lição de vida... Acho que todo mundo devia ser um pouco mais metido a besta, buscar viver as coisas que lhes fazem bem, que lhes dão prazer e não aquelas que estão na moda, que todo mundo usa, faz ou gosta.
Acho que todo mundo devia ser bem metido a besta e se valorizar, dar importância às qualidades que tem e não ficar sofrendo porque tem espinhas sempre que está perto de menstruar, porque a barba fica encravada ou porque quando fica nervosa costuma afinar a voz.
É importante observar que os meus motivos pra ser metida a besta podem ser considerados defeitos por outras pessoas. Cada um tem seus valores.
Se você parar pra pensar, dentro dos seus valores, vai ver que tem muito mais motivos pra ser metido a besta do que motivos para não ser.
É ou não é motivo para ser bem metido a besta?
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 04/06/2008
Alterado em 13/11/2013