Textos


 
Bordados na Alma
 
A caridade seria perfeita
se não causasse satisfa­ção em quem a pratica.
Carlos Drummond de Andrade

Helena é a secretária de dona Zuleica. Como em quase todos os lares, essa relação profissional se expande pela convivência diária e elas deixam de ser apenas empregada e patroa. Tornam-se amigas e nos divertem com seus domesticálogos (diálogos domésticos).
– Helena! Olha o leite derramando!
– Ai, meu Deus!
– O que houve menina? Tá no mundo da lua?
– É. Me distraí aqui, pensando numa coisa que eu ouvi no elevador.
– Ouvindo a conversa alheia, Helena?
– Ué! Eu não sou surda. A dona lá falou, eu ouvi.
– E o que foi que ela disse que custou meu leite?
– “São bordados na alma”.
– Assim? Do nada?
– Não. Ela estava falando no celular.
- E depois?
- Chegou meu andar e eu desci. O que será que ela quis dizer?
– É uma metáfora, uma expressão poética.
– Tipo o tal de “beijo no coração”?
– Tipo. Se bem que beijo no coração é pior. Quando alguém me diz isso, não consigo deixar de imaginar a pessoa abrindo meu peito, tirando o coração lá de dentro pra dar um beijo nele.
– Eco! Que sangueira.
– É meio macabro, né?
– Ô! Mas, "bordado na alma" eu gostei. O que será que ela quis dizer com isso?
– Diga você. O que é que você acha?
– Pois é. Fiquei aqui pensando.
– É! Senti o cheiro.
– Do leite derramado?
– De neurônio queimado.
– Ô, dona Zuleica!
– Brincadeira, Helena, não pude resistir. Mas, fiquei curiosa. O que você estava pensando?
– Bom... Bordar é enfeitar, né? Então, bordar a alma deve ser assim: a gente enfeita ela, deixa colorida e alegre, para quando a gente for pro céu.
– E como é que se enfeita a alma, Helena?
– Fazendo o bem, ué! Ajudando o próximo, os mais necessitados...
– Nossa, Helena! Que lindo! Gostei de ver.
– Obrigadinha. E, por falar em ajudar o próximo, será que a senhora não poderia me adiantar um troquinho pra eu viajar no carnaval, não?
– Helena!
– Ah, dona Zuleica, sua alma ia ficar tão bonita, com essa caridade ali bordadinha!...

 
Texto publicado na edição de hoje do jornal Alô Brasília e reeditado do texto homônimo publicado neste Recanto das Letras em 29/11/2010.
Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 15/01/2016


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