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O Trenzinho e a Traição
 
A loja do seu Antenor ficava no caminho de Claudinho à escola. Naquela segunda-feira, o olhar do menino foi atraído pelo novo brinquedo exposto na vitrine: um trenzinho caipira reluzente, com uns bons três metros de trilhos que subiam e desciam pelo pequeno espaço.
O menino colou a testa no vidro, encantado, admirando cada detalhe, até que viu o preço, numa plaquinha ao canto.
Não que o menino fosse pobre, mas seus pais trabalhavam muito para que a família tivesse o mínimo de conforto, sem grandes regalias. Aquele valor seria uma grande regalia.
Afastou-se, desanimado e retomou seu caminho. Ao chegar na escola, encontrou o pequeno grupo de seus melhores amigos, que logo perceberam sua tristeza.
- O que houve, Claudinho? - perguntou o menino Manuel.
Seus olhinhos brilhavam, enquanto descrevia cada vagão e a locomotiva vermelha, com sua chaminé prateada, os trilhos serpenteando pela loja. Por último, descreveu sua frustração ao ver o preço, inalcançável.
- Quem sabe, você não poderia ganhá-lo de aniversário? Peça ao seu pai…- sugeriu Manuel.
- Ah! Mas meu aniversário está muito longe. - lamentou-se ele.
- Você poderia trabalhar dsitribuindo jornais ou aparando grama, que nem nos filmes americanos. - Paulinho deu a ideia.
- E tomar o lugar do Pinguim?
- É mesmo. - lembrou-se o amigo - depois que a mãe dele adoeceu, o dinheirinho que ele faz com esses serviços ajuda muito no sustento da família.
Claudinho era um menino muito querido por todos, que não gostavam de vê-lo assim tristonho, mas, por mais que pensassem numa solução, parecia que o brinquedo nunca chegaria às suas mãos.
Foi quando chegou Renatinho, filho do prefeito.
- Eu tenho a solução.
Todos olharam para ele, desconfiados.
- Meu pai vai me dar um dinheiro se eu passar em matemática. Se você me der cola na prova, compro o trenzinho bobo para você e ainda sobra um bom bocado para mim.
Claudinho ficou tentado, mas sabia que isso era errado. Fez, então uma contraproposta:
- Vamos fazer diferente. Eu te ensino a matéria da prova.
O outro, que não era muito adepto do esforço, ainda tentou mostrar-lhe o quanto seria mais fácil para ele apenas lhe passar a cola, mas diante das negativas do menino, acabou aceitando.
E assim foi. Nas duas semanas seguintes, Renatinho, saia da sala de aula direto para a casa do colega e estudava com ele. De repente, aquele monte de números e operações começava a fazer sentido para o garoto mimado e, na prova, ele tirou uma nota muito boa.
Claudinho ficou muito satisfeito com o resultado e, no recreio, foi cobrar a sua parte no trato.
Renatinho, porém, disse que ele não tinha direito a nada. Afinal, se ele havia conseguido a nota para passar, fora graças aos seus próprios esforços, gastando tardes inteiras às voltas com os livros.
Pobre Claudinho! Surpreendido daquele modo, fitava o chão, sem saber o que fazer. Os amigos não se conformavam:
- Conte ao pai dele! - uns sugeriram.
- Dê queixa dele na direção da escola! - outros falavam.
- Vamos dar uma surra nele! - gritou um mais exaltado.
Os outros se dividiram entre apoiar e repudiar a ideia mais violenta.
Mas, Claudinho, cabisbaixo, só pensava em acabar logo aquele dia tão triste em que, tão precocemente, tivera seu primeiro encontro com a traição.
A sineta do colégio veio convidá-los a retornar às salas de aula.
O professor já estava em sua mesa e tão logo Renatinho entrou na sala, o admoestou, para que todos ouvissem:
- Então, o senhor colou na prova?
- Eu!? Não! - indignou-se ele.
- Pois eu tenho certeza que sim. Venho acompanhando seu desempenho todos esses meses. Não me venha dizer que da noite para o dia, você tornou-se um matemático.
- Não! - respondeu ele, exaltado. - Eu estudei!
- Ora, senhor Renato Augusto Palhares! A quem o senhor pensa que engana? Seu pai já foi chamado à escola e se prepare que ele vem bravo!
Neste momento, uma voz grave e forte se fez ouvir nos corredores.
O menino tremeu.
Viúvo, o pai era carinhoso e fazia todas as suas vontades, exceto no que se referia aos estudos: notas baixas eram a única coisa capaz de tirá-lo do sério.
O homem entrou na sala bufando, o rosto muito vermelho e já foi logo perguntando:
- Você colou?
- Eu… Eu estudei. - balbuciou o menino.
- Não minta para mim!
- Não estou mentindo, papai. - as lágrimas escorriam pelos olhos.
- Os professores dizem que você nunca tirou uma nota tão boa!
- Eu… - o menino chorava.
Nesta hora, estava mesmo arrependido de ter traído o colega. Seria a hora de chamá-lo em seu socorro, para provar o quanto ele se esforçara.
Porém, Claudinho tinha uma alma muito boa e levantou a mão.
- Senhor.
O professor fez sinal para ele se calasse, mas o menino chamou mais alto.
- Senhor!
O prefeito o encarou, enfurecido.
- O que é!?
- Ele está dizendo a verdade.
O homem olhou para o menino, depois para o fiho.
Os colegas não acreditavam que ele estivesse intercedendo pelo outro. Renatinho também não.
- Nós estudamos juntos. Pode perguntar à minha mãe.
Como que por mágica, o rosto do homem se desanuviou, aliviado. Virou para o filho.
- É verdade?
Renatinho soluçava, envergonhado diante da bondade do outro, mesmo depois de tudo o que ele fizera. Assentiu com a cabeça.
O prefeito virou-se para o professor, que não sabia onde se esconder.
- Da próxima vez, o senhor investigue melhor as coisas, antes de acusar injustamente uma criança.
Ajoelhou-se, secou o rosto do filho com o lenço, desculpou-se, deu-lhe um abraço, um beijo na testa e saiu.
O professor, tentando recuperar a dignidade perdida depois do papelão, mandou que cada um ocupasse sua carteira e fingiu que nada havia acontecido.
- Abram seus livros na página 45.
Depois da aula, Renato foi procurar Claudinho.
- Por que você me ajudou?
- Porque estavam dizendo que você fez uma coisa que você não fez.
- Mas, eu fui injusto com você.
- Foi. Mas uma coisa não tem nada a ver com a outra.
- Puxa! Depois de tudo o que eu te fiz…
- Por que você fez aquilo comigo?
Renatinho pensou um pouco, antes de responder.
- Eu tentava aprender e não conseguia. Daí, desisti. Então você veio e me mostrou que eu posso, que basta me esforçar um pouco mais. Agora, eu não tinha mais a desculpa de ser burro. E eu fiquei com raiva de você. Era mais fácil passar colando…
- Mas, foi bom poder provar ao professor que sua nota foi merecida, não foi?
- E ao meu pai. Você viu como ele me olhou depois que você me defendeu?
- Vi.
- Você me perdoa?
- Se você prometer continuar se esforçando…
- Só se você me ajudar…
- Ajudo, sim. Eu gosto de ensinar.
- … E me deixar brincar com o seu trenzinho.
Claudinho encarou-o aborrecido. Então, o outro ainda estava zombando dele?
- Eu não tenho um trenzinho. - respondeu, sério.
Renatinho sorriu.
- Então, vamos buscar. E eu vou comprar um para mim também. Assim, podemos brincar com o meu quando você for me visitar.

 
Este texto faz parte do Exercício Criativo - Traição
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Nena Medeiros
Enviado por Nena Medeiros em 02/09/2013
Alterado em 03/09/2013


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